Introdução
Segundo o Global Petrol Prices, em 2019, o Brasil ocupa a 37ª posição entre 110 países de custo de energia elétrica em dólar corrente, atrás daqueles desenvolvidos, mas com preço maior comparado àqueles em nível de desenvolvimento semelhante. Fazendo a comparação com 2020, ajustando por Paridade de Poder de Compra, a relação se mantém, com o país estando em posição melhor do que a maioria daqueles desenvolvidos, mas pior do que países como Polônia, África do Sul, China, México, Índia, entre outros.
O marco legal e regulatório que rege atualmente o setor elétrico, portanto, se mostra insuficiente para lidar com as mudanças e dinamismo necessários para um mercado mais competitivo e com qualidade de serviços melhores. Ademais, é importante também destacar o incremento da diversidade de tecnologias que produzem eletricidade a um nível cada vez mais descentralizado – inclusive ao nível do domicílio, com utilização de painéis solares. O modelo atual de contratação, desta maneira, de longo prazo regulado para atender o mercado atendido pelas distribuidoras, acaba por ser demasiadamente centralizador, estando na contramão, da tendência atual do setor.
Há crescentes evidências de que o setor elétrico tem passado por um processo de liberalização ao redor do mundo. Originalmente, o fornecimento de energia dos países da União Europeia, por exemplo, era um monopólio natural que abrangia a produção, distribuição e comercialização. Desde a década de 1990, esta tem tentado liberalizar os mercados de eletricidade, buscando fomentar um mercado competitivo para o comércio de energia, em um processo incremental. Os marcos para a integração do mercado da energia da UE foram três pacotes de liberalização aplicáveis aos mercados da eletricidade e do gás, dos quais o último foi adotado em 2009. O mercado de energia da UE para eletricidade e gás natural está liberalizado na maioria dos países desde 2008, tendo criado as condições para a entrada de novos fornecedores de energia no mercado e um ambiente competitivo, com redução de preços e melhor qualidade de serviços prestados.
Simulações de um modelo desenvolvido por Lise e Kruseman (2008), analisando efeitos das decisões de investimento em um mercado de eletricidade liberalizado sobre os preços e o meio ambiente no horizonte de tempo 2000-2050, indicam que aumento da concorrência leva a preços mais baixos e beneficia o meio ambiente na forma de menores emissões de ácido e poluição. Uma pesquisa de Ponce e coautores (2020), com dados cobrindo 27 países da União Europeia durante o período 2004–2017, usando um modelo econométrico de efeitos bidirecionais, sugere que a liberalização do mercado interno de energia está negativamente relacionada às emissões de CO2, de modo que a política teria se mostrado eficaz na redução das emissões do gás. Shin e Managi (2017), analisando pesquisas domiciliares japonesas coletados antes e depois da recente liberalização do mercado de eletricidade no país, compararam as mudanças nas classificações de satisfação relatadas dos consumidores que mudaram de provedor desde a liberalização e aqueles que permaneceram com o provedor estabelecido para examinar se a mudança poderia ser uma melhoria na utilidade, encontrando evidências de apoio de um impacto positivo da reforma da política de desregulamentação, permitindo que os consumidores escolham seus fornecedores.
O Novo Marco Regulatório do Setor Elétrico
Em fevereiro deste ano, foi remetido para a Câmara dos Deputados o PLS 232/2016, denominado Novo Marco Regulatório do Setor Elétrico. Aprovado pelos integrantes da Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado ainda em março de 2020, o projeto dispõe sobre o modelo comercial do setor elétrico, a portabilidade da conta de luz e as concessões de geração de energia elétrica. Na Câmara, o projeto de lei foi numerado como PL 414/2021 e aguarda despacho do Presidente da casa legislativa para seguir em tramitação.
É estabelecida a portabilidade da conta de luz reconhecendo, portanto, a necessidade de maior liberalização no setor, buscando estimular a concorrência e diminuir os elevados preços da energia elétrica no país. Com essa medida, o consumidor poderia escolher o fornecedor do qual ele compraria energia elétrica (aquele que ofereça melhores condições). Para esse tipo de consumidor, os serviços de rede de distribuição serão cobrados em paralelo, de modo separado de acordo com a regulação da Aneel. O novo marco do setor elétrico também prevê a necessária modernização das tarifas de energia(multipartes), aprimoramento importante para dar o correto sinal econômico as inovações como geração distribuída, sistemas de armazenamento(baterias) e claro, a participação ativa dos consumidores na própria operação das redes inteligentes.
Exemplos e lições aprendidas do setor de Telecomunicações
A mudança seria análoga à que ocorreu nas telecomunicações. Em 1997, foi aprovada a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), que alterou o modelo do setor de um sistema de serviços prestados por empresas estatais, para a abertura de mercado à iniciativa privada. Ainda que as telecomunicações continuam sendo um serviço público previsto na Constituição e a infraestrutura existente tendo sido mantida propriedade da União, sua exploração passou a ser feita por meio de concessão a terceiros, com o consumidor podendo escolher sua operadora.
A reforma foi seguida de grande desenvolvimento tecnológico e econômico do segmento, havendo hoje mais linhas telefônicas móveis do que habitantes no país. Mas também houve desafios ainda não superados. A Anatel, agência regulatória criada no período, não criou um parâmetro de tarifas, chamado “modelo de custo”, que permitiria uma transparência e controle maiores sobre a comercialização tanto no atacado quanto para o consumidor final. O baixo número de empresas e a dependência destas com financiamento público ao longo dos últimos 20 anos também se mostrou problemática para o modelo.
Desafios para a liberalização no modelo de energia elétrica
Um dos desafios consiste no fato do modelo mais liberalizado (contratação em separado descrita acima) impactar negativamente as distribuidoras colocando em risco os investimentos e a expansão no setor. Em outras palavras, o problema é como trazer o novo modelo para o setor garantindo os investimentos necessários para o sistema atender a demanda de modo seguro, mesmo em situações emergenciais. Nesse sentido a proposta cria o lastro de produção e o lastro de capacidade de produção. Os ofertantes poderiam, via leilão, obter certificados de lastro de produção e de lastro de capacidade de produção (utilizando-os para obter financiamentos de bancos privados).
Mudanças propostas no Novo Marco do Setor Elétrico
A partir da leitura mais detalhada do atual texto da proposta, identificam-se cinco dispositivos de maior relevância, cuja aprovação deve ser priorizada pelos congressistas. A tabela abaixo faz uma pequena síntese, de forma didática, da esteira de mudanças previstas.
A primeira prioridade a ser observada na discussão da matéria encontra-se no art. 16-A, acrescentado à Lei n° 9.074/1995. O projeto em discussão na Câmara propõe a abertura gradual do modelo comercial de energia elétrica, ao permitir que consumidores com carga inferior a 3.000 kw possam optar livremente pelo fornecedor. O novo dispositivo determina que, decorridos 42 meses da sanção da lei, todos os consumidores, independentemente da carga ou tensão utilizada, estarão aptos a escolherem o fornecedor de energia no mercado livre.
O mercado livre consiste em um ambiente no qual vendedores e compradores podem negociar entre si o fornecimento de energia elétrica, de acordo com as regras do setor. Por sua vez, o mercado tradicional de energia, que opera no ambiente de contratação regulada, não prevê a possibilidade de o consumidor escolher o fornecedor de energia. Hoje, esse fornecedor é necessariamente a empresa que detém a concessão da área onde se encontra o consumidor cativo. A mudança proposta no projeto de lei, portanto, amplia as opções disponíveis ao consumidor e prioriza a competitividade, o que estimula a redução de preços e o aumento de eficiência dos fornecedores de energia elétrica.
De acordo com a redação do projeto aprovado no Senado, além disso, é prevista a redução dos subsídios concedidos às empresas do setor elétrico, estimados em R$ 22 bilhões em 2020. Fontes incentivadas de energia, como eólica, solar, termelétricas à base de biomassa e pequenas centrais hidrelétricas consomem cerca de R$ 3,6 bilhões em subsídios atualmente, o que produz distorções significativas [1]. A maior parcela desses valores é arcada por consumidores que fazem uso do mercado regulado de energia elétrica, responsável pelo atendimento da população de baixa renda. A proposta em trâmite na Câmara dos Deputados, dessa maneira, visa à redução dessas distorções, por meio da substituição dos subsídios por mecanismo que valorize os benefícios ambientais dos empreendimentos de fontes incentivadas de energia, conforme a redação dos novos §§1°-C a 1°-F do art. 26, Lei n° 9.427/1996.
Adicionalmente, os artigos 16-C e 16-D, acrescidos à Lei n° 9.074/1995 pelo Novo Marco Regulatório do Setor Elétrico, permitem o compartilhamento, entre as distribuidoras, dos custos com a migração de consumidores para o mercado livre. A medida é salutar, uma vez que a expansão do mercado livre e a consequente redução do mercado regulado devem ocorrer de maneira equilibrada, a fim de se evitar que os consumidores cativos subsidiem aqueles que optarem pelo mercado livre.
Neste sentido, o art. 16-C estabelece aos consumidores que migrarem para o mercado livre a obrigação de pagar os custos remanescentes das operações financeiras contratadas para atender à finalidade de modicidade
tarifária, mediante encargo tarifário cobrado na proporção do consumo de energia elétrica. O art. 16-D, por sua vez, impõe encargo tarifário a todos os consumidores, na proporção do consumo de energia elétrica, para a cobertura dos custos de sobrecontratação das distribuidoras, decorrentes da possível migração massiva dos consumidores cativos para o mercado livre.
O quarto tópico do PL 414/2021, que merece atenção, encontra-se na separação entre lastro e energia elétrica. De acordo com a definição do novo art. 3°, §5°, I, da Lei n° 10.848/2004, lastro é a contribuição de cada empreendimento ao provimento de confiabilidade e adequabilidade sistêmica. Em outras palavras, trata-se de uma garantia de bom funcionamento do sistema elétrico, exigida pelo Ministério de Minas e Energia, a ser paga por geradores, distribuidores e consumidores de energia. Tais lastros, além de dar mais confiança ao consumidor, poderão facilitar obtenção de financiamentos no setor financeiro privado.
Ocorre que, pelas regras atualmente vigentes, o lastro e a energia elétrica são negociados como um produto unificado, o que pode resultar na precificação equivocada e gerar distorções graves. De fato, os consumidores cativos, atendidos pelas distribuidoras, arcam com a maior parcela dos custos do lastro. O projeto, portanto, promove alterações legislativas que visam ao reequilíbrio desse encargo entre os consumidores dos mercados livre e regulado.
O quinto ponto prioritário do Novo Marco Regulatório do Setor Elétrico, presente no novo art. 1°-A da Lei n° 12.783/2013, modifica o regramento de repartição da renda hidráulica, valor devolvido pelas hidrelétricas aos consumidores do mercado regulado. O dispositivo criado pelo PL 414/2021 admite a prorrogação dos contratos de concessão de energia hidrelétrica, uma única vez, pelo prazo de até 30 anos, de forma a assegurar a continuidade, a eficiência da prestação do serviço e a modicidade tarifária. Nessa hipótese, dois terços da renda hidráulica devem ser destinados à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), para a redução da conta de luz dos consumidores, e o outro terço, ao Tesouro Nacional (art. 1°-A, §1°, I e II).
[1] A Medida Provisória 998 também endereça tal questão, mas com exageradamente longo período de transição.
Potencial impacto econômico e fiscal
Com relação aos efeitos econômicos da aprovação do PL 414/2021, estimamos que o projeto pode gerar crescimento de 0,5% do PIB até 2024. A projeção é baseada na metade do valor das estimativas do CONGRESSIONAL BUDGET OFFICE sobre impacto da economia americana devido a variações de preços de energia elétrica. Segundo o estudo, o nível do PIB quatro anos do choque de preço de energia foi cerca de 1 por cento menor do que teria se estes não tivessem subido tanto (o preço do petróleo bruto, fonte principal de energia elétrica nos EUA dobrou desde o final de 2003). Desse modo, estimamos metade desse efeito, com sinal inverso, para o Brasil como consequência dessa reforma.
O efeito fiscal advém tanto indiretamente do crescimento da economia, como diretamente da redução dos subsídios previstos no texto. Assim, haveria pouco mais de R$ 11 bilhões adicionais de receita pelo crescimento do PIB, aplicando um percentual de 30% de carga tributária, e cerca de outros R$ 3 bilhões da medida mencionada.
Conclusão
O Novo Marco Regulatório do Setor Elétrico, como visto no texto acima tem potencial para trazer significativas mudanças na relação do consumidor com o sistema de energia, de forma mais flexível e descentralizada. Com isso, o Brasil ingressará no grupo de países com sistema mais liberalizado de distribuição de energia elétrica, que já tiveram significativos impactos positivos em diversos países.
Além da importância da aprovação da modernização do setor elétrico cabe ressaltar sua urgência. Diversas distorções se acumulam e ampliam os custos de energia. Por sua vez preços mais altos estimulam comportamentos de fuga dos custos do sistema em um processo que se autoestimula. Assim quanto maior a demora maior será o preço que a sociedade pagará para ter um setor mais eficiente e incorporando inovações tecnológicas que provocarão uma verdadeira revolução em favor dos consumidores, com redes inteligentes, maior penetração das energias renováveis e da geração distribuída.
As mudanças, por outro lado, também trazem seus riscos. Estes, no entanto, são adereçados no novo marco com compartilhamento, entre as distribuidoras, dos custos com a migração, além de lastros de segurança, cujo papel é, além de dar mais confiança ao consumidor, também reduzir a dependência do setor com financiamentos do BNDES.
O potencial impacto econômico e fiscal de tal marco, nos próximos anos, é estimado em 0,5% de alta do PIB, com aumento de receita de cerca de R$ 11 bilhões, adicionalmente a uma economia advinda R$ 3 bilhões com o fim dos subsídios aplicados a parte do setor. A totalidade do ganho fiscal é estimado, portanto, em R$ 14 bilhões.
Todo esse impacto, associado aos efeitos positivos do projeto de lei sobre as atividades produtivas e o bem-estar da população, reforçam a necessidade de modernização regulatória do setor elétrico. Por esses motivos, o Novo Marco Regulatório do Setor Elétrico foi um dos projetos de infraestrutura selecionados para integrar o pilar Crescimento Sustentável do movimento Unidos pelo Brasil. Sua aprovação consiste em mais um passo em direção à retomada do crescimento econômico, com base em emprego e renda.
Referências Bibliográficas
Lise, Wietze, and Gideon Kruseman. 2008. “Long-term price and environmental effects in a liberalised electricity market.” Energy Economics 30, no. 2: 230-248.
Ponce, Pablo, Cristiana Oliveira, Viviana Álvarez, and María de la Cruz del Río-Rama. 2020. “The Liberalization of the Internal Energy Market in the European Union: Evidence of Its Influence on Reducing Environmental Pollution.” Energies 13, no. 22: 6116.
Shin, Kong Joo, and Shunsuke Managi. 2017. “Liberalization of a retail electricity market: Consumer satisfaction and household switching behavior in Japan.” Energy Policy 110: 675-685.