Pode parecer utópico demais pensar que existe ou existiu gestores públicos, que postos diante de tamanhas dificuldades tenham agido motivados pelo interesse público e tenham abstraído totalmente a ideia dos seus próprios interesses. Mas lhes asseguro que eles existiram e estarão sempre guardados em nossa história, como te mostrarei a seguir. Confira!
O desafio da liderança aos gestores públicos
O momento atual demonstra que a vida dos que escolheram ser gestores públicos não é fácil. Sua imagem, história são bombardeadas de forma indecorosa. Sua família é exposta aos piores examinadores. Seus passos são seguidos, medidos e avaliados por todos.
O glamour muitas vezes imaginado por aqueles que veem de fora, são restritos aos eventos formais, à reverência de alguns e ao título que antecede seu nome nos documentos burocráticos que recebe. Essa dura realidade é mitigada pela sensação de poder, pela atenção e prestígios passageiros que são sentidos pelo gestor público.
Quanto ao dinheiro, parto da premissa que o líder e gestor público, não ocupa esse cargo para ganhar dinheiro. Primeiro, por que a remuneração, apesar de muito superior à média dos trabalhadores brasileiros, é infinitamente menor que os líderes de empresas privadas. E segundo pelo motivo simples que líderes públicos não devem estar ali para enriquecer, mas para servir.
Imagino que esteja se perguntando sobre o “dinheiro desviado”. Bem! Posso lhe assegurar que a prática de corrupção não é comum a todos os líderes públicos e àqueles que a cometem não devem merecer tal título e sim de criminoso, motivo pelo qual, não tratarei desses “tipos” nesse artigo.
A qualidade dos grandes gestores públicos
Essa é a verdade! Acreditem ou não. Ser um líder público e ocupar um cargo de liderança dentro de qualquer governo é um desafio monstruoso e transcende a pessoa do líder e seu gabinete. E esse desafio toma proporções inimagináveis quando são postos diante de ameaças à vida, liberdade e modo de vida dos cidadãos que confiaram nesses líderes, como o atual momento em que enfrentamos uma pandemia sem precedentes na história atual e que já ceifou a vida de mais de 320 mil pessoas.
Diante de tamanho desafio, acredito que tenhamos tão poucos grandes exemplos de gestores públicos que conseguiram passar por tais provações e ainda assim desempenharam papel de extrema relevância, marcando seu nome na história e contribuindo para o desenvolvimento de nossa civilização.
São várias as qualidades desses grandes líderes, algumas específicas de cada um, outras comuns a esses exemplos. Mas nenhuma se sobressai mais do que a capacidade que tiveram de se abster do seu interesse individual em benefício do coletivo, sobretudo nas grandes crises humanitárias. Não pense que essa prática é tão simples quanto a frase pode descrever. Se abster do individual é ter humildade suficiente para ouvir o outro, mesmo que esse seja seu antigo inimigo. É abster de seus princípios mais enraizados e avaliar a situação por meio de uma perspectiva isenta. É estar aberto a conjecturar todas as alternativas propostas, de onde quer que elas venham. É buscar uma visão ampla e afastada de todo e qualquer sectarismo.
Liderança Pública em tempos crises exige unidade nacional e apartidarismo
Se voltarmos à 10 de maio de 1940, quando a poderosa Alemanha Nazista de Adolf Hitler iniciou sua campanha militar contra os países da Europa, com a invasão da Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França, um líder político conservador, é nomeado para liderar a Inglaterra em um dos piores desafios que seu povo enfrentaria.
Winston Churchill lidera a Inglaterra
Em meio à inúmero críticos, partidos de oposição e seu costumeiro radicalismo conservador, Winston Churchill abdica de seu pensamento político partidário e organiza um governo de unidade nacional, com a participação dos líderes do Partido Trabalhista e do Partido Liberal, apresentando-se na Câmara dos Comuns, com seu inebriante discurso “Sangue, Sofrimento, Lágrimas e Suor”, do qual destaco os seguintes parágrafos, in litteris:
“Na última sexta-feira à noite recebi de Sua Majestade o encargo de constituir novo Governo. Era evidente desejo do Parlamento e da Nação que este Governo tivesse a mais ampla base possível e que incluísse todos os Partidos. Fiz já a parte mais importante desse trabalho. Formei um gabinete de guerra com cinco membros, que representam, com a Oposição Trabalhista, e os Liberais, a unidade nacional. Era necessário que tudo isto se fizesse num só dia, dada a extrema urgência e gravidade dos acontecimentos. Outros cargos importantes foram providos ontem e apresentarei esta noite ao Rei uma nova lista. Conto concluir amanhã a nomeação dos principais ministros. (…) Formar um Governo de tão vastas e complexas proporções é, já por si, um sério empreendimento, mas devo recordar ainda que estamos na fase preliminar duma das maiores batalhas da história, que fazemos frente ao inimigo em muitos pontos – na Noruega e na Holanda -, e que temos de estar preparados no Mediterrâneo, que a batalha aérea contínua e que temos de proceder nesta ilha a grande número de preparativos. (…) Mas assumo a minha tarefa com entusiasmo e fé. Tenho a certeza de que a nossa causa não pode perecer entre os homens. Neste momento, sinto-me com direito a reclamar o auxílio de todos, e digo: Unamos as nossas forças e caminhemos juntos.”
A partir desse momento, a Inglaterra foi liderada numa luta solitária contra um inimigo mais forte e que já beirava sua fronteira. Imbuído de seu espirito nacional e tomando as medidas de interesse do povo britânico manteve a Inglaterra unida mesmo diante dos intermináveis bombardeios realizados pela Luftwaffee alemã.
A coragem e astúcia Churchill eram potentes características desse grande líder, mas a sua capacidade de manter seu país unido, foi com certeza sua maior proeza e através dessa unidade impediu que a Inglaterra e talvez o mundo perecessem para o terrível nazismo.
Liderança pública em tempos de crise exige superar as próprias dores
Anos após os acontecimentos acima narrados, em 1964 um jovem idealista e advogado negro foi condenado à pena de prisão perpétua por liderar o movimento contra o regime do apartheid que imperava na África do Sul e estabelecia a ideia de superioridade racial do branco.
Nelson Mandela na África
Após 26 anos de prisão, tortura e total desrespeito, aquele idealista é libertado da prisão e em sua primeira aparição, para a surpresa de muitos, faz o seguinte pronunciamento:
“Eu lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Eu tenho prezado pelo ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas possam viver juntas em harmonia e com iguais oportunidades. É um ideal pelo qual eu espero viver e que eu espero alcançar. Mas caso seja necessário, é um ideal pelo qual eu estou pronto para morrer”
Para aqueles que aguardavam a fúria vingativa de um homem que teve privada sua liberdade e dignidade, por mais de duas décadas, contra seus algozes, ouviram desse eminente Líder Público uma mensagem de paz, harmonia e de união.
Em 1994 esse idealista, Nelson Mandela, é eleito presidente da África do Sul, e acaba com 300 anos de segregação racial que imperavam sobre seu país. Faz isso através do reconhecimento da igualdade racial e do interesse de todo o povo sul-africano. Em seu discurso de posse, asseverou:
“Temos triunfado no nosso esforço de implantar a esperança no coração de milhões de compatriotas. Assumimos o compromisso de construir uma sociedade na qual todos os sul-africanos, quer sejam negros ou brancos, possam caminhar de cabeça erguida, sem receios no coração, certos do seu inalienável direito à dignidade humana: uma nação arco-íris, em paz consigo própria e com o mundo. (…) Nunca, nunca e nunca mais voltará esta maravilhosa terra a experimentar a opressão de uns sobre os outros, e nem sofrer a indignidade de ser a escória do mundo.
O sol nunca se porá sobre um tão glorioso feito humano.
Que reine a liberdade.
Que Deus abençoe África!”
Como se vê, à despeito de outras qualidades, o maior exemplo de liderança pública de Nelson Mandela foi a sua capacidade de abdicar das dores pessoais mais profundas, em nome do interesse comum, em nome do seu país e da sua sonhada “nação arco-íris”.
A ética e o propósito dos gestores públicos
Esses dois grandes exemplos nos fazem refletir sobre as decisões tomadas por aqueles que elegemos e por aqueles que são nomeados por quem elegemos, em especial nesse momento em que sofremos com as danosas perdas impostas pela pandemia da COVID-19.
Assim como ocorre agora, pude presenciar em minha trajetória como servidor público, diversas decisões tomadas sob a lente do egoísta pensamento do interesse próprio. Por mais que pudessem guardar conformidade legal ou formal pertinentes, falhavam insistentemente na sua finalidade e por esse motivo, ao meu ver, estavam eivadas de vícios.
Afinal, será correto um líder público tomar decisões baseadas no seu interesse de ser reeleito? Será correto um gestor público efetivo tomar decisões com interesse na manutenção da sua remuneração ou dos benefícios da sua progressão de carreira?
À luz do interesse público, não! Toda vez que um líder público toma uma decisão com ênfase em seu exclusivo interesse, mata um pouco do espírito público que o levou até ali. Toda vez que um gestor público escolhe a alternativa que atende seu interesse, de algum amigo ou de um pequeno grupo que lhe apoia, demonstra sua pequenez e incompetência face à complexa multidão de raças, crenças, gêneros e classes sociais que formam o seu imenso país.
Todas as vezes que a população é esquecida dentro de uma reunião de gabinete de gestores públicos, se rasga o manto sagrado da função dos gestores públicos e do seu dever para com seu povo. Em todas essas vezes, é esquecida a ideia que se baseia a constituição de um Estado Democrático de Direito, no qual todo poder emana do povo e em nome dele deve ser exercido!
Por isso, conquanto seja uma função penosa, desgastante e que esgote até a ultima energia de seu ser, saiba que aqueles que se propõe a ocupar os cargos de gestores públicos devem estar dispostos a suportar isso e ainda mais. E mesmo assim, devem manter-se, por obrigação moral, constitucional e de honra, defensores inabaláveis do interesse da coletividade, dos princípios que norteiam a sua nação e das necessidades de seu povo.
Mariano Alonso Miranda é advogado especialista em Direito Público, líder MLG pelo Master em Liderança e Gestão Pública pelo CLP – Liderança Pública de São Paulo e módulo internacional na Oxford University. Foi Subsecretário de Gestão da Secretaria de Saúde de Juiz de Fora de 2013 a 2019. Atualmente é palestrante, professor e consultor de empresas e órgão públicos, nas áreas de direito e gestão pública, gestão hospitalar e de licitações, contratos e convênios.