Introdução
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que desobriga a contratação de servidores públicos exclusivamente sob o regime estatutário representa um marco significativo na administração pública brasileira. Essa medida flexibiliza o regime jurídico único dos servidores, permitindo que a União, estados, Distrito Federal e municípios adotem diferentes modelos de contratação, incluindo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Na prática, isso possibilita a contratação de funcionários públicos sem a estabilidade típica dos cargos estatutários.
No contexto brasileiro, essa mudança é particularmente relevante devido ao alto percentual de servidores públicos sob o regime estatutário. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) indicam que cerca de 70% dos servidores federais são estatutários, percentual que se reflete também em estados e municípios. Ao todo, 65% dos 12,1 milhões de funcionários públicos no país possuem estabilidade, um número expressivo quando comparado a outras nações.
Em países desenvolvidos, como Alemanha, Reino Unido e Suécia, o cenário é distinto. Nesses locais, a maioria dos servidores é regida por normas semelhantes às do setor privado, embora com algumas vantagens e segurança no cargo. A plena estabilidade é reservada apenas a carreiras específicas, como as do Judiciário. Essa diferença acentua as disparidades entre o funcionalismo brasileiro e o de outras nações, evidenciando a rigidez do sistema brasileiro.
A flexibilização promovida pelo STF é, portanto, um passo positivo rumo à modernização do Estado brasileiro. Ao permitir diferentes regimes de contratação, abre-se espaço para uma gestão mais eficiente e alinhada às práticas internacionais. Além disso, pode contribuir para a redução de custos e para a melhoria dos serviços prestados à população, ao incentivar maior dinamismo e responsabilidade entre os servidores.
No entanto, para que essa medida alcance seu pleno potencial, será fundamental a implementação de regulamentações claras que estabeleçam categorias específicas de Estado e outras mais gerais. Isso garantirá que carreiras típicas de Estado, que desempenham funções essenciais e exclusivas, continuem protegidas e valorizadas. Ao mesmo tempo, permitirá maior flexibilidade na contratação de profissionais para áreas que não requerem estabilidade permanente.
Em suma, a decisão do STF pode ser vista como uma oportunidade para repensar e aprimorar a estrutura do serviço público no Brasil. Com regulamentações adequadas, essa mudança tem o potencial de equilibrar a necessidade de estabilidade em cargos estratégicos com a eficiência e a flexibilidade exigidas em um mundo cada vez mais dinâmico. É um passo importante para aproximar o Brasil das melhores práticas internacionais e para construir um Estado mais moderno e eficaz.
Discussão Geral
O Brasil é frequentemente criticado por sua ineficácia na entrega de serviços públicos, ao mesmo tempo em que muitos argumentam que o Estado é inchado e ineficiente. Paradoxalmente, essas duas percepções podem ser simultaneamente verdadeiras. Segundo o Worldwide Bureaucracy Indicators, do Banco Mundial, o país gasta cerca de 10,5% do PIB com empregados no setor público, ocupando a 21ª posição entre 58 países, e a 7ª posição entre os países em desenvolvimento. No entanto, em termos de percentual de ocupados no setor público, o Brasil está em 43º lugar, com apenas 12,5% dos ocupados trabalhando na administração pública – atrás dos Estados Unidos, México e África do Sul.
Esse quadro reflete o trilema do setor público, em que o Brasil gasta uma proporção significativa de seu PIB com pessoal público, mas enfrenta dificuldades para equilibrar o número de empregados e os salários. O trilema envolve a escolha entre a participação relativa de empregados no setor público, seus salários em relação ao nível de renda geral e o gasto público. Essencialmente, um governo que deseje manter uma alta participação de empregados públicos (como percentual do total de ocupados) e salários competitivos em comparação com o PIB per capita enfrentará pressões para aumentar o gasto público com pessoal. Por outro lado, reduzir o gasto público com empregados significa que, para manter essa proporção de empregados e níveis salariais, será necessário comprometer uma dessas variáveis — seja reduzindo a proporção de empregados públicos no total de ocupados ou ajustando os salários para que estejam mais próximos da renda média da população.
A relação pode ser expressa pela seguinte fórmula, que descreve o gasto com empregados públicos como proporção do PIB:
Essa fórmula mostra que o gasto com empregados públicos como proporção do PIB depende de três componentes: (1) a participação de empregados públicos em relação ao total de ocupados, (2) a taxa de ocupação da população total e (3) a relação entre o salário médio dos empregados públicos e o PIB per capita. Ajustar um desses componentes para controlar o gasto com pessoal implica, necessariamente, em comprometer um dos outros fatores, evidenciando o trilema.
Essa dupla de gráficos ilustra a relação entre o salário médio dos empregados públicos em relação à renda média do país (no eixo horizontal) e a participação de empregados públicos no total de ocupados (no eixo vertical). O primeiro gráfico agrupa os países pelo nível de renda, enquanto o segundo os agrupa pelo nível de gasto público com empregados do setor público (como proporção do PIB). Esses gráficos evidenciam diferentes abordagens dos países para equilibrar a proporção de trabalhadores no setor público e os salários desses trabalhadores.
Salários Relativo do Setor Público e Percentual de Empregados Públicos entre Ocupados
No primeiro gráfico, observa-se que países de alta renda tendem a manter um equilíbrio entre um maior número de empregados públicos e salários mais baixos relativos à média nacional. Em contraste, países de renda média-alta, como o Brasil, preferem compensar esse equilíbrio com um aumento no gasto público, mantendo menos empregados no setor público, mas com salários relativos mais elevados. Isso destaca como os países mais ricos conseguem distribuir melhor os recursos, enquanto países de renda média-alta enfrentam maior variabilidade na forma como alocam recursos para o setor público.
O segundo gráfico confirma essa análise ao agrupar os países pelo nível de gasto público com empregados do setor público. Nesse gráfico, os países com altos gastos públicos com empregados apresentam uma relação mais estável entre o percentual de empregados públicos e seus salários relativos. Por outro lado, países com gastos médios e baixos exibem maior dispersão, indicando estratégias mais variadas de equilíbrio entre o número de funcionários públicos e os níveis salariais.
Esses resultados sugerem que países desenvolvidos, em média, mantêm um gasto com empregados públicos próximo de 10% do PIB, com uma variabilidade reduzida (desvio padrão de 2,3%). Em contrapartida, países de renda média-alta, com uma média de gasto público de 7,5%, enfrentam maior variabilidade (desvio padrão de 2,6%) devido a diferentes abordagens para resolver o dilema entre quantidade e salário no setor público. Isso reforça a ideia de que o nível de gasto público influencia significativamente a relação entre o número de empregados no setor público e seus salários relativos.
O Brasil é um exemplo de país que enfrenta desafios para aumentar o percentual de trabalhadores no setor público, especialmente em áreas essenciais como educação, saúde, segurança e justiça. Esses profissionais — como professores, policiais, médicos, enfermeiros, defensores públicos e juízes — são necessários para atender à demanda da população, mas o país encontra dificuldades para expandir o número de servidores devido às restrições fiscais.
Ao mesmo tempo, o Brasil se destaca pelo nível salarial dos empregados no setor público. Em relação ao PIB per capita (pouco abaixo de R$ 4 mil), o salário médio dos servidores públicos no Brasil é 89% superior, o que coloca o país na nona posição em um conjunto de 58 países com dados disponíveis, e em terceiro lugar entre países de renda média-alta (e acima de todos os países desenvolvidos).
O gráfico ajuda a entender essa dinâmica, mostrando a relação entre o “prêmio salarial” dos empregados públicos em relação aos empregados formais do setor privado e o salário médio do setor público em relação à renda média do país. A linha de tendência no gráfico sugere que países com um maior prêmio salarial no setor público tendem também a apresentar salários públicos elevados em relação à média nacional.
Prêmio do Setor Público e Salário Relativo dos Empregados Públicos
Como se vê, o prêmio salarial é um fator importante para explicar o alto nível dos salários no setor público em relação ao setor privado formal. Esse diferencial reflete as pressões fiscais envolvidas na manutenção de um setor público competitivo, mas ao mesmo tempo sustentável.
Vale notar que o prêmio salarial no setor público brasileiro é impulsionado principalmente pelo nível federal, onde os salários médios dos servidores são significativamente superiores à média nacional. No entanto, esse fenômeno ocorre porque, enquanto o regime jurídico único predomina na esfera federal, alguns estados e municípios já começaram a flexibilizar seus regimes de contratação. Muitos desses entes subnacionais implementaram, antes da suspensão de 2007, a chamada convivência de modelos de trabalho, permitindo a contratação tanto pelo regime estatutário quanto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Essa flexibilização possibilita uma maior capacidade de ajuste em termos de despesas com pessoal, especialmente em períodos de restrições fiscais. A convivência de regimes ajuda a explicar o crescimento no número de empregados no setor público municipal, que aumentou 13% entre 2012 e 2024, enquanto os níveis estadual e federal permaneceram praticamente estagnados. Apesar desse avanço, o setor público municipal ainda contrata apenas cerca de 6% de seus servidores via CLT, em comparação com menos de 2,5% no nível federal, de acordo com os dados da RAIS de 2021 – vale notar, no Estado de São Paulo, quase 20% das administrações municipais têm contratados via CLT. A maior participação de contratos CLT nos municípios sugere uma maior flexibilidade no gerenciamento de despesas com pessoal, permitindo adaptações às necessidades locais e facilitando o controle dos gastos públicos.
Com a mudança introduzida pelo STF, portanto, torna-se crucial discutir uma regulamentação clara sobre as possibilidades de contratação via CLT no setor público. Idealmente, essa modalidade não deveria ser aplicada às carreiras típicas de Estado, que desempenham funções essenciais e exclusivas para a manutenção da autoridade estatal e que não possuem correspondência no setor privado. Essas carreiras constituem o núcleo estratégico do Estado, exigindo altos níveis de capacitação, comprometimento e responsabilidade para assegurar que as atribuições de poder e soberania do Estado sejam conduzidas de maneira eficiente e imparcial.
As carreiras típicas de Estado incluem setores críticos como segurança pública, manutenção da ordem tributária e financeira, regulação, fiscalização, gestão governamental, elaboração orçamentária, controle, inteligência de Estado, serviço exterior brasileiro, advocacia pública, defensoria pública, e a atuação institucional dos Poderes Legislativo, Judiciário e do Ministério Público. Esses profissionais realizam atividades essenciais que envolvem o exercício direto do poder estatal, tais como o monitoramento e a aplicação de leis, a formulação de políticas públicas e a defesa dos interesses do Estado e da sociedade. Por isso, é fundamental que essas carreiras continuem regidas por um regime que lhes ofereça estabilidade e garantias apropriadas, fortalecendo a imparcialidade e a dedicação necessárias para desempenhar tais funções com excelência e segurança.
Conclusão
A decisão do STF de flexibilizar o regime jurídico dos servidores públicos representa um importante passo para a modernização da administração pública no Brasil. Esse movimento abre novas possibilidades para a gestão de pessoal, permitindo que estados e municípios, além da União, adotem modelos de contratação mais flexíveis, como a CLT, em áreas onde a estabilidade não é essencial. No entanto, para que essa mudança produza resultados eficazes, será indispensável estabelecer diretrizes claras que delimitem as situações e as funções onde a contratação fora do regime estatutário é adequada.
Essa regulamentação deverá garantir que as carreiras típicas de Estado, responsáveis por funções exclusivas e estratégicas, permaneçam protegidas pelo regime estatutário. Essas carreiras desempenham atividades que demandam alta qualificação, responsabilidade e imparcialidade, sendo essenciais para a preservação da autoridade e soberania do Estado. Garantir a estabilidade e as condições adequadas para esses profissionais é fundamental para assegurar o cumprimento eficaz das suas funções, que incluem desde a segurança pública e a gestão tributária até a fiscalização, regulação e a representação diplomática do país.
Em última análise, a implementação bem-sucedida dessa flexibilização depende de um equilíbrio cuidadoso entre eficiência administrativa e a preservação de funções essenciais ao Estado. A decisão do STF oferece uma oportunidade de aprimorar a estrutura do serviço público, promovendo mais flexibilidade sem comprometer o núcleo estratégico de funções que sustentam o poder estatal. Com uma regulamentação robusta e um planejamento estratégico, o Brasil poderá avançar rumo a um modelo de administração pública mais ágil, responsável e alinhado às necessidades do século XXI.