O sistema free flow de pedágio

Introdução

O pedágio eletrônico em fluxo livre (free flow) utiliza tecnologias como transponders, câmeras e sensores para cobrar dos usuários das rodovias sem exigir paradas em praças de pedágio. Esses sistemas têm como objetivo eliminar gargalos nas praças. Mantendo os veículos em movimento, o free flow pode reduzir o congestionamento e o tempo em baixa velocidade, resultando em viagens mais rápidas e menores emissões.

Muitos países já adotaram tais sistemas para melhorar a mobilidade urbana e financiar infraestrutura. No entanto, o Brasil só pôde abandonar as cabines de pedágio depois da Lei 14.157/2021, que autorizou o Sistema de Livre Passagem e inseriu a infração específica no Código de Trânsito. Em seguida, o Contran editou a Resolução 984/2022 (vigente em janeiro de 2023), definindo o procedimento de autuação para quem não paga. Finalmente, ainda em 2023, a ANTT criou o primeiro ambiente regulatório experimental de pedágio sem cancela numa concessão federal (BR-101).

Três pórticos foram instalados na Rio Santos, passando por Itaguaí, Mangaratiba e Paraty. O mesmo sistema foi implementado na BR-116, passando pela Região Metropolitana de São Paulo. Já o Estado de São Paulo adotou o primeiro pórtico estadual em Itápolis (jul 2024) e Jaboticabal (nov 2024), na SP‑333 (EcoNoroeste). Na Rodovia dos Tamoios (SP‑099), o free flow entrou em operação em novembro 2024 no Contorno Sul, já com tarifa dinâmica e painéis informativos.O Governo paulista planeja 58 pórticos em todo o Estado, inclusive no Rodoanel, usando lições desses pilotos para aperfeiçoar comunicação e sistemas de cobrança. Em Minas Gerais, o sistema começou a ser usado recentemente, operado pela concessionária EPR Sul de Minas.

Já no Paraná, se instalou pórtico‑piloto na BR‑277 (Via Araucária) em março de 2025; o governo estadual avalia incorporar o modelo ainda mais aos lotes 3 e 6. Finalmente, o Estado do Rio Grande do Sul adaptou o contrato do Bloco3 (Caminhos da Serra Gaúcha) para testar free flow por dois anos. O termo aditivo suspende a construção de praças e as substitui por pórticos, repartindo o risco de evasão: 5 % da concessionária e 95% do Estado, cobertos com a “conta‑multa”. A experiência serve de laboratório para novos editais sem depender de mudança legislativa federal.

Riscos para o sistema free flow: o potencial cancelamento de multas

Há uma articulação do Congresso de cancelar multas anteriores dos pedágios eletrônicos já implementados. A pressão ganhou corpo com a apresentação do PL 3.262/2024, de autoria do deputado Hugo Leal (PSD‑RJ). No texto que tramita na Câmara, Leal propõe anistiar todas as infrações registradas durante o período de testes do free flow, retirar os pontos lançados nas CNHs dos infratores. Ele sustenta que a fase experimental foi marcada por falhas de comunicação, alegando que muitos condutores não receberam aviso claro sobre prazos e meios de pagamento, o que justificaria a remissão das penalidades.

Na Comissão de Viação e Transportes, presidida pelo próprio deputado, audiências públicas têm reunido concessionárias, ANTT, procuradores da República e representantes de usuários. Leal afirma não ser “contra a tecnologia”, mas defende que “injustiças” cometidas com os motoristas precisam ser corrigidas para preservar a legitimidade do sistema.

A proposta enfrenta resistência dos Ministérios dos Transportes e da Fazenda, que temem o impacto sobre a segurança jurídica das concessões. A anistia das multas a motoristas que deixaram de pagar o pedágio eletrônico no prazo, de fato, representa um sério risco à credibilidade do modelo de free flow. Ao sinalizar que o descumprimento atual será perdoado retroativamente, o Congresso envia a mensagem de que as regras podem ser flexibilizadas depois do fato consumado, enfraquecendo o princípio da previsibilidade regulatória que sustenta toda concessão de infraestrutura.

Adicionalmente, o perdão penaliza quem agiu corretamente. Centenas de milhares de condutores já pagaram suas tarifas ou regularizaram os boletos emitidos; se as multas forem canceladas para inadimplentes, esses usuários teriam direito moral a reembolso ou abatimento proporcional. Se cria, assim, um potencial passivo adicional para as concessionárias ou para o erário, onerando exatamente os cidadãos que cumpriram a lei.

Ainda, a anistia cria um incentivo perverso: motoristas podem concluir que vale a pena “testar” a inadimplência, esperando um indulto futuro. Esse comportamento mimetiza o que ocorre no sistema tributário federal com os sucessivos programas de parcelamento REFIS: a cada rodada de renegociação, empresas que se mantiveram adimplentes veem suas concorrentes premiadas com descontos e alongamentos, o que eleva o risco moral e corrói a base de arrecadação. Estudos sobre o REFIS mostram que “premia‑se a inadimplência, e não a pontualidade”, incentivando contribuintes a adiar o pagamento na expectativa de novos perdões.

Finalmente, o cancelamento generalizado mina a sustentabilidade financeira dos contratos. O fluxo de caixa projetado para remunerar investimentos em pórticos se baseia na hipótese de níveis de adimplência superiores a 90%. A taxa de inadimplência, hoje, está controlada: Em São Paulo, o pórtico em Itápolis apresenta um índice de 8,4% não pagando a tarifa, percentual abaixo do registrado recentemente nos pórticos da BR-101 (Rio-Santos), no Rio de Janeiro (6,1%), segundo dados da ANTT. Já em Minas Gerais, a inadimplência no pórtico da MG-459, entre Ouro Fino e Monte Sião, está em 2,9%. No entanto, se o poder público criar a expectativa de não cobrança, concessionárias precisarão elevar tarifas futuras ou demandar recomposição de equilíbrio econômico‑financeiro, aumentando o custo para todos os usuários e reduzindo o apetite de investidores em futuros leilões.

A experiência internacional

Vale notar que há precedentes internacionais de colapso do sistema de pedágio eletrônico por falta de compliance. O caso de Gauteng, na África do Sul, mostra que, quando a maioria percebe que “ninguém paga”, a inadimplência dispara e o sistema se torna inviável, exigindo aportes públicos bilionários para honrar dívidas.

Em 2013, o governo ativou um sistema de e‑toll na rede de autoestradas ampliadas de Gauteng (em torno de Joanesburgo e Pretória). O plano utilizava sensores em pórticos e reconhecimento de placas para cobrar os motoristas pelo uso das vias recém‑alargadas, visando quitar os títulos de dívida pública emitidos para financiar as melhorias. Contudo, desde o primeiro dia, o programa enfrentou intensa desobediência civil. Muitos condutores simplesmente se recusaram a registrar e‑tags ou a pagar as faturas.

Como consequência, apenas cerca de 30% dos motoristas cumpriram a obrigação no dia do lançamento. Em seis meses, a conformidade subiu para apenas 40%, apesar das ameaças de penalidades para os inadimplentes. Ministros emitiram advertências, mas acabaram recuando diante da forte reação pública e política. Em certo momento, a conformidade com o e‑toll foi estimada em apenas 17,7%, o que significa que mais de 4/5 dos motoristas burlavam o sistema.

Nos anos seguintes, esse movimento de não pagamento cresceu, com diversas ações judiciais contra o pedágio eletrônico e campanhas públicas conclamando os motoristas a não pagarem nem os valores, nem as multas. A aplicação da lei se mostrou ineficaz, pois processar milhares de infratores era impraticável, e as tentativas de vincular a renovação de licenças aos pagamentos não foram para frente. O sistema, que deveria gerar bilhões para o financiamento das rodovias, transformou‑se em fracasso financeiro, exigindo resgates governamentais para honrar a dívida.

Em 2019, a agência rodoviária anunciou que deixaria de cobrar judicialmente as faturas em aberto, sinalizando o fim do e‑toll. Após anos de impasse, o governo decidiu, em 2022–2023, desativar totalmente o sistema de Gauteng. A recusa em pagar acabou tornando o sistema inviável, mostrando que, mesmo com tecnologia avançada, um programa de pedágio sem enforcement robusto fracassa.

Felizmente, há muitos casos de sucesso em contraponto ao que ocorreu na África do Sul. Estocolmo, Londres e diversas outras cidades no adotaram algum tipo de free flow, tendo como consequência redução de tráfego e poluição.

Um dos primeiros casos dessa tecnologia foi o Electronic Road Pricing (ERP) de Singapura, que foi implantado em 1998. O ERP substituiu um antigo sistema manual e rapidamente se tornou uma das mais importantes políticas de transportes do país. Pórticos distribuídos pelo centro e por vias arteriais debitam automaticamente cobranças de cartões inteligentes instalados nos veículos, com tarifas que se ajustam de acordo com a hora do dia.

O sistema de multa de Singapura é duro: veículos sem um transponder ativo detectado são multados, enquanto aqueles com recursos insuficientes no cartão inteligente são cobrados com uma taxa administrativa. Essa fiscalização automatizada mantém as violações em menos de 1%.

Como resultado, Singapura hoje mantém o congestionamento bem controlado, apesar do aumento da demanda por viagens. As velocidades médias em rodovias e corredores principais permanecem entre 45 e 65 km/h, pois as tarifas sobem quando as velocidades caem. Os passageiros responderam deslocando parte de suas viagens para horários de menor movimento ou para o transporte público, de modo que o volume de tráfego no pico é menor do que seria sem a tarifação.

Singapura teve ainda benefícios ambientais e de segurança. O governo estima que o ERP (1998–2008) cortou cerca de 103 quilotoneladas de emissões de CO2, além de reduções ainda maiores decorrentes de medidas anteriores de restrição ao tráfego.

O êxito do ERP é também atribuído à comunicação pública. As autoridades passaram anos educando a população antes do lançamento e houve uma forte vontade política (apoiada pelo primeiro‑ministro), que manteve a política mesmo diante do ceticismo inicial. Hoje, o ERP é considerado um modelo para o gerenciamento de congestionamento, mostrando que as pessoas aceitam pedágios assim que percebem a melhora no tráfego.

Há ainda mais casos de sucesso. Por exemplo, a rodovia de fluxo livre CityLink, em Melbourne, Austrália (inaugurada em 2000), gerou economias significativas de tempo, estimadas em A$ 118 milhões em seu primeiro ano; em 2011, a economia anual estimada foi de A$ 187 milhões para os motoristas (cerca de 71% dos benefícios quantificados do projeto). Em São Francisco (EUA), autoridades de transporte apontam que o free flow reduz significativamente as emissões nos períodos de pico nesses corredores. Finalmente, em Santiago, Chile, o tráfego mais fluido, proporcionado pelas rodovias com pedágio em Free Flow, contribuiu para diminuir as emissões de carbono na área metropolitana.

Estocolmo, na Suécia, iniciou um projeto‑piloto de tarifação de congestionamento em 2006 (tornado permanente em 2007) usando reconhecimento automático de placas para cobrar veículos que ingressam na cidade. O trânsito para o centro caiu cerca de 22%, e uma década de avaliações mostrou uma redução permanente de 20% nos volumes de tráfego, além de queda de 10–14% nas emissões na zona tarifada. Embora inicialmente controverso, o êxito do teste mudou a opinião pública, e a maioria votou a favor da manutenção do sistema em referendo. Isso mostra que benefícios comprovados podem conquistar o apoio popular a políticas de pedágio ao longo do tempo.

A Congestion Charge de Londres (lançada em 2003) emprega câmeras eletrônicas para cobrar veículos que entram na zona do Centro de Londres. Houve redução imediata de tráfego (15–20% menos carros na área) e diminuição de cerca de 30% nos atrasos por congestionamento nos primeiros anos.

Outras cidades, como Oslo e Bergen, na Noruega, utilizam anéis eletrônicos de pedágio em torno dos centros urbanos há décadas, inicialmente para financiar obras em rodoviárias e, mais recentemente, com tarifas variáveis para gerenciar congestionamento e poluição. A Noruega foi uma das primeiras na automação total dos pedágios: em 2004, os principais anéis urbanos já operavam 100% sem dinheiro e de forma automatizada, evitando filas.

Esses casos de sucesso têm fatores em comum: objetivos claros, fiscalização rigorosa, tecnologia conveniente e reinvestimento dos benefícios. Nessas cidades, a população percebeu melhorias visíveis, sejam deslocamentos mais rápidos em Estocolmo ou menos poluição em Londres, o que consolidou a confiança de que os programas estavam funcionando conforme o planejado.

Conclusão

Como argumentado, manter as multas vigentes respeita o usuário que paga em dia, preserva o equilíbrio contratual e reforça a cultura de responsabilidade no trânsito. A pedagogia do sistema depende de consequência certa e proporcional: quem quita no prazo economiza tempo e evita pontos na CNH; quem ignora o débito arca com custo adicional. Se o Congresso revogar multas já aplicadas, seguirá por um atalho populista que prejudicará a solidez de todo o programa de free flow.

Isso não significa ignorar falhas na comunicação. O caminho mais seguro é aperfeiçoar a experiência do usuário e ampliar a transparência, sem abdicar do princípio básico de que serviço utilizado deve ser pago. Por exemplo, alguns usuários enfrentaram dificuldades de pagamento, um problema já reconhecido pela própria ANTT e pelas concessionárias, que já ampliaram o prazo de quitação para 30 dias, integraram notificações à Carteira Digital de Trânsito e abriram canais Pix, apps e totens físicos. Melhorar sinalização, simplificar aplicativos, criar central única de cobrança e oferecer tag gratuita a grupos vulneráveis são outras medidas legítimas que o poder público pode (e deve) bancar, mas sem transformar descumprimento em regra.

Finalmente, para que o free flow se consolide como padrão de pedágio no país, é essencial avançar em quatro frentes integradas: primeiro, escalonar a instalação de novos pórticos nos próximos editais federais, assegurando que todas as concessionárias utilizem tags plenamente interoperáveis; segundo, empreender campanhas educativas de alcance nacional antes de cada expansão, oferecendo um período inicial de gratuidade e incentivos a quem aderir à tag para criar cultura de pagamento eletrônico; terceiro, aprimorar a regulação da ANTT e do Contran, detalhando a indexação tarifária por distância percorrida, o modelo de custeio dos pórticos e regras claras de parcelamento de débitos, de modo a equilibrar eficiência, justiça e sustentabilidade financeira; e, por fim, integrar os fluxos de dados dos pórticos a painéis em tempo real para gestão de tráfego e segurança pública, replicando as boas práticas já testadas no Rio Grande do Sul e em outras concessões‑piloto.

Por Daniel Duque, gerente da Inteligência Técnica do CLP

COMPARTILHE ESSE ARTIGO

Notícias Relacionadas