Os impactos do fim da obrigatoriedade da autoescola para habilitação
Em 2025, o governo brasileiro propôs eliminar a obrigatoriedade de frequentar autoescolas para obter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) nas categorias A (moto) e B (carro). A iniciativa permitiria que os candidatos estudassem por conta própria, contratassem instrutores autônomos credenciados ou seguissem o modelo tradicional nas autoescolas.
O objetivo central é tornar o processo de habilitação mais acessível e menos burocrático, reduzindo custos ao cidadão e ampliando o acesso à CNH, especialmente para milhões de brasileiros atualmente sem habilitação. Esta análise examina os potenciais impactos econômicos da mudança, seus efeitos na segurança no trânsito e como o novo modelo se compara aos sistemas de licenciamento de países desenvolvidos.
Redução de Custos e Acesso Ampliado
Atualmente, tirar a CNH no Brasil custa em média R$ 3.200, dos quais cerca de R$ 2.500 são pagos à autoescola e R$ 700 a taxas obrigatórias. Em alguns estados, o custo total pode chegar a R$ 5.000. Esses valores representam uma barreira significativa para a população de baixa renda.
Cerca de 70% do custo atual decorre das exigências de aulas e estrutura das autoescolas. Com a proposta, estima-se uma redução de até 80% no custo da primeira habilitação, o que diminuiria o gasto médio para aproximadamente R$ 700 (mantendo apenas taxas e eventuais aulas avulsas).
Essa queda drástica de custo tornaria a CNH muito mais acessível, expandindo o número de pessoas habilitadas. O governo calcula que a medida beneficiaria cerca de 20 milhões de brasileiros que hoje não conseguem obter a CNH devido a impedimentos financeiros.
De fato, pesquisas indicam que mais de 18 milhões de pessoas dirigem atualmente sem habilitação no país, e 54% dos brasileiros aptos a dirigir não possuem CNH, sendo o custo elevado o principal motivo. Ao baratear o processo, a expectativa é trazer grande parte desse contingente para a legalidade, aumentando a emissão anual de novas CNHs (que vinha caindo nos últimos anos, de 2,8 milhões em 2022 para 2,59 milhões em 2024) e incluindo milhões de novos condutores no mercado formal.
Vale notar que, mesmo com custos nominais menores que em alguns países desenvolvidos, o Brasil lidera em custo relativo à renda, aproximadamente 7,8% do salário médio anual para tirar a CNH, comparado a 3,2% na Alemanha e 2,4% na França. Essa disparidade evidencia por que a habilitação é considerada quase inalcançável para muitos brasileiros de baixa renda. A redução proposta aliviria esse peso, aproximando o custo da CNH brasileira do patamar de nações onde a habilitação é mais acessível.
| País | Salário Médio Anual | Custos para ser aprovado o Licenciamento | Custo relativo ao salário |
| Brasil | R$ 41 mil | Mínimo de R$ 3200 (incluindo taxas) | 7,8% |
| Noruega | 494.370,11 coroas norueguesas | Mínimo de 30.000 coroas | 6,1% |
| Espanha | 33.659,66€ | Testes 123€, Aulas 25€, Teoria 92€, Inscrições 59€, Saúde 25€, Minuto 1.334,53€ | 4,0% |
| Reino Unido | £ 35.031,61 | Provisório £ 34- £ 43, Prático £ 62, Teoria £ 23, Aulas £ 25-£ 30 / hora, Min £ 1.244 | 3,6% |
| Suécia | 421.214,71 coroas suecas | Mínimo de 15.000 coroas suecas | 3,6% |
| Irlanda | 43.832,33€ | 1 ano €25, 3 anos €35, 10 anos €55, Aulas €30-€40/hora, Min €1.495 | 3,4% |
| Alemanha | 47.616,30€ | Aulas 45€-70€, Testes 91,75€, Teoria 22,49€, Minuto 1.500€ | 3,2% |
| França | 49.50 € | Aulas de 30 a 50 euros, mínimo de 1.200 euros | 2,4% |
| Itália | 33.462,09€ | Mínimo de € 800 | 2,4% |
| Portugal | 25.170,32€ | Licença € 400, Taxa de emissão € 30, Min € 430 | 1,7% |
| Tailândia | 1.160.000 THB | Licença 305-605 THB, testes 50-200 THB, aulas 3.000-4.000 THB, mínimo 6.855 THB (£ 152,84) | 0,6% |
| EUA | US$ 69.400 | Licença de US$ 10 a US$ 89, testes de US$ 50 a US$ 150, pacotes de US$ 200 a US$ 1.800, mínimo de US$ 200 | 0,3% |
Fonte: https://www.uswitch.com/car-insurance/guides/cost-of-driving-licences-around-the-world/ e PNAD Contínua para dados do Brasil
Efeitos Indiretos no Consumo e na Economia
A economia proporcionada pela desobrigação das aulas formais pode ter efeitos multiplicadores no consumo. Cada candidato que poupar quase R$ 2 mil no processo de habilitação (diferença entre o modelo atual e o proposto) terá essa quantia liberada para outros gastos familiares.
Em escala nacional, se milhões de novos condutores aproveitarem a redução de preço, bilhões de reais podem ser redirecionados para o consumo em outros setores da economia, seja na compra de motocicletas e automóveis, combustível, manutenção veicular ou mesmo em bens de primeira necessidade. Além disso, ao facilitar a obtenção da CNH para jovens, a medida pode inserir mais pessoas no mercado de trabalho (muitas vagas exigem habilitação), aumentando a produtividade e renda dessas populações.
Há também impactos setoriais a considerar. A indústria de veículos e seguros pode ser beneficiada no médio prazo, pois condutores formalizados tendem a adquirir veículos próprios e contratar seguros, gerando receita para esses segmentos.
Por outro lado, a queda nos custos de habilitação implica menor faturamento para as autoescolas e possivelmente redução de arrecadação tributária proveniente desse setor específico. Contudo, essa perda direta poderia ser compensada, ao menos parcialmente, pelo aumento do consumo em outras áreas (que gera tributos como ICMS) e pela formalização de atividades que hoje ocorrem à margem (por exemplo, candidatos que dirigem sem CNH ou aprendem de maneira informal passarão a entrar no sistema oficial).
Geração de Renda e Empregos (Instrutores Autônomos)
A proposta cria a figura do instrutor autônomo credenciado, o que tende a formalizar e diversificar o mercado de trabalho de instrutores de trânsito. Hoje, os instrutores são vinculados exclusivamente aos Centros de Formação de Condutores (CFCs, ou autoescolas) e sujeitos a regras rígidas de infraestrutura, o que limita a oferta e encarece o serviço.
Com a mudança, instrutores certificados poderão atuar de forma independente, utilizando veículo próprio ou do aluno, similarmente ao que já ocorre em diversos países. Esse modelo amplia as oportunidades de trabalho para profissionais de instrução, uma vez que o governo prevê valorizar a carreira, oferecendo curso de formação gratuito para instrutores autônomos e cadastro unificado via Senatran/Detrans. Ao se desvincular da estrutura das autoescolas, o instrutor poderá atender alunos de forma direta, possivelmente cobrando menos pelas aulas e ainda assim aumentando sua renda líquida (já que reduzirá intermediários e custos fixos).
Espera-se, portanto, a entrada de novos microempreendedores no mercado de ensino de direção, fomentando renda especialmente em localidades com pouca oferta de CFCs. A iniciativa permite que muitos instrutores hoje informais ou desempregados passem a atuar legalmente, gerando renda própria e contribuindo com impostos (por exemplo, via MEI ou Simples Nacional).
Vale notar que a flexibilização tende a democratizar a geração de renda hoje concentrada nas autoescolas, espalhando-a entre milhares de instrutores independentes em vez de concentrá-la em empresas. Além disso, a modernização regulatória proposta também inclui desburocratizar exigências para as próprias autoescolas, como métricas de salas de aula, uso obrigatório de simuladores e padronizações onerosas. Isso pode reduzir os custos operacionais dos CFCs, permitindo que se adaptem e continuem concorrendo num mercado mais competitivo. Em suma, no balanço econômico, a proposta promete alívio financeiro aos candidatos e estímulo à economia de consumo, ao mesmo tempo em que desloca a estrutura de geração de renda do modelo tradicional de CFCs para um modelo híbrido de pequenas unidades autônomas de instrução.
Efeitos sobre a Segurança no Trânsito
Uma preocupação central é como a flexibilização da formação afetará a segurança no trânsito. As autoescolas defendem que o treinamento estruturado e supervisionado é essencial para formar motoristas seguros, alegando que afrouxar a preparação pode elevar os acidentes e onerar o sistema de saúde (SUS) com vítimas de trânsito. Em 2023, o Brasil registrou 34.881 mortes no trânsito, que o país se comprometeu a reduzir pela metade até 2030.
Dirigir sem uma carteira de motorista válida é um risco generalizado, presente tanto em países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos. No Brasil, estima-se que 40% dos veículos em circulação sejam operados por motoristas sem habilitação. Análises empíricas mostram de forma consistente que condutores não habilitados têm alto risco de se envolver em acidentes, além de aparecerem com frequência desproporcional em ocorrências graves.
Uma análise de uma década de acidentes fatais na Noruega constatou que 10% de todos os acidentes fatais em vias envolveram um motorista ou motociclista sem carteira de motorista. Nos Estados Unidos, onde as leis de habilitação são rigidamente aplicadas, cerca de 18% dos acidentes fatais envolvem um motorista sem carteira válida (não habilitado, com licença suspensa ou revogada). Isso correspondeu a mais de 21 mil mortes entre 2007 e 2009 em acidentes causados por condutores com habilitação inválida.
Estudos de vários países convergem ao indicar que motoristas sem carteira de motorista apresentam risco substancialmente maior de acidentes. Um estudo caso-controle com dados de acidentes na Espanha, por exemplo, constatou que condutores que nunca haviam obtido carteira, assim como aqueles que dirigiam com a licença suspensa, tinham probabilidade muito maior de serem considerados culpados pelos acidentes do que motoristas devidamente habilitados. O risco aumentado permaneceu significativo mesmo após o ajuste para características do condutor, tipo de veículo e condições da via.
Países em desenvolvimento enfrentam desafios ainda maiores em relação à direção sem habilitação. Por exemplo, no setor de motocicletas e riquixás motorizados na China, é comum a presença de operadores não habilitados. Uma análise recente verificou que motociclistas sem carteira de motorista envolvidos em acidentes tinham probabilidade muito maior de sofrer lesões graves ou fatais do que condutores habilitados.
Do ponto de vista de segurança pública, portanto, é relevante considerar que a medida trará para a formalidade muitos condutores que antes dirigiam sem licença. Embora tais indivíduos não passem por todo o curso tradicional, ao menos serão submetidos às avaliações oficiais e registrados no Renach (Registro Nacional de Condutores). Isso pode melhorar a segurança indiretamente, pois um motorista habilitado tende a conhecer melhor a legislação (mesmo que tenha estudado por conta própria) do que um totalmente não treinado e ilegal. Além disso, condutores formalizados podem ser alcançados por políticas públicas de educação e fiscalização (campanhas, pontuação na CNH, penalidades), coisa que não ocorria com os “invisíveis” sem carteira.
Exemplos de vários países ilustram as aplicações práticas e os resultados desses métodos de treinamento. Na Suécia, abaixar a idade mínima para aprendizado acompanhado enquanto mantém a idade de condução solo ajudou a aumentar o total de horas de prática, resultando em taxas significativamente menores de acidentes entre novos motoristas. O caso da França também destaca os desafios na implementação, mostrando que a condução acompanhada não se traduz automaticamente em uma condução mais segura pós-licenciamento, potencialmente devido à prática insuficiente ou supervisão ineficaz.
Vários países adotaram programas de learning by doing sob supervisão (geralmente de pais ou mentores experientes) antes da habilitação plena. Estudos indicam que acumular entre 5.000 e 7.000 km dirigidos sob supervisão antes de obter a carteira pode reduzir drasticamente a incidência de acidentes graves entre os novos motoristas. Essa lógica embasou a implantação dos sistemas de habilitação gradativa (Graduated Driver Licensing, ou GDL) em diversos países, que estimulam longos períodos de prática supervisionada.
Em suma, do ponto de vista da segurança, quantidade e qualidade de prática real importam mais do que o formato (formal ou informal) do ensino. O modelo atual brasileiro, centrado em aulas padronizadas e número mínimo de horas, forma candidatos capazes de passar nos exames, mas muitos recém-habilitados ainda se sentem inseguros no trânsito real, pela escassa vivência prática. O novo modelo, ao valorizar a autonomia do aprendiz, poderá ser positivo se incentivar mais horas de direção efetiva sob supervisão (seja de instrutores autônomos ou de familiares habilitados).
Fiscalização, Exames e Qualidade do Processo
A manutenção da segurança também dependerá de como o exame teórico e prático será conduzido e fiscalizado no novo modelo. O governo já adiantou que não abrirá mão das provas exigidas, os candidatos continuarão passando por teste teórico de legislação e prova prática de direção veicular, além dos exames de aptidão física e mental obrigatórios. A diferença é que as aulas preparatórias serão facultativas, cabendo ao aspirante decidir se quer ter instrução profissional (e de que forma) ou se sente preparado para treinar por conta própria e realizar o teste.
Essa abordagem “centrada na avaliação final” é inspirada em países como Estados Unidos e Reino Unido, onde o foco recai sobre passar no exame, independentemente de como o candidato aprendeu a dirigir. Para que isso funcione sem prejuízo à segurança, é crucial que os exames continuem exigentes e imparciais. Ou seja, a prova prática deverá realmente filtrar quem não tem a habilidade mínima necessária. Nesse sentido, investir em treinamento dos examinadores, padronização dos critérios e talvez até uso de tecnologias (simuladores voluntários, telemetria nos testes, etc.) pode ajudar a garantir que somente motoristas capacitados obtenham a CNH, seja qual for sua rota de aprendizagem.
O governo planeja implementar recursos para controlar a qualidade da instrução autônoma. Conforme mencionado, instrutores independentes precisarão passar por um curso de formação e credenciamento nos Detrans, recebendo uma identificação profissional e sendo listados em sistemas públicos. Assim, um candidato poderá verificar online se um instrutor é habilitado oficialmente antes de contratá-lo. Essa transparência ajuda a coibir falsos instrutores e a dar accountability ao processo. Ainda, discute-se a carga horária prática mínima obrigatória residual, que cairia para 2 a 5 aulas práticas obrigatórias (bem menos que as 20 atuais), para garantir que cada candidato tenha ao menos uma base orientada antes do exame. Caso essa exigência mínima seja aprovada, ela poderá ser cumprida tanto em CFCs quanto com instrutores autônomos, preservando a flexibilidade, mas adicionando um “piso” de treinamento supervisionado.
Convergência em Relação ao Padrão Internacional
Sob o novo modelo, o Brasil ficaria posicionado de forma interessante no espectro internacional: mais próximo dos países anglo-saxões nas etapas de formação, mas mantendo a tradição latina/europeia de exames exigentes e certificação estatal. Em termos de acessibilidade, a mudança claramente colocaria o Brasil em um patamar similar ao de países com menores barreiras de entrada na habilitação.
No curto prazo, isso significa popularizar a CNH como já ocorre em nações onde grande parte da população economicamente ativa é habilitada. Para efeitos de comparação, estima-se que no Reino Unido cerca de 75% dos adultos possuem carteira de motorista, nos EUA esse índice supera 80%, enquanto no Brasil apenas cerca de 46% dos adultos possuem CNH. Com a flexibilização proposta, espera-se reduzir essa diferença, permitindo que a CNH deixe de ser um “luxo” para se tornar algo tão comum quanto em países desenvolvidos, sobretudo para moradores de regiões sem transporte público adequado, que dependem de veículo próprio para mobilidade.
Do ponto de vista de segurança viária, o Brasil terá o desafio de importar as boas práticas associadas aos modelos flexíveis. A proposta de CNH sem autoescola coloca o país em consonância com uma tendência internacional de democratização do acesso à habilitação, corrigindo uma anomalia em que o país figurava entre os mais caros do mundo (proporcionalmente) para se tirar carteira. Com isso, espera-se reduzir desigualdades de acesso (hoje a CNH é majoritariamente acessível a homens de maior renda, com a idade média da 1ª habilitação sendo 26 anos, reflexo das dificuldades atuais) e formar mais motoristas dentro da lei.
Por Daniel Duque, head da Inteligência Técnica do CLP


