*Por Aline Mendes e Patrícia Florêncio
As discussões acerca do papel feminino no serviço público brasileiro e a necessidade de a representação das mulheres nos espaços de liderança refletir a sociedade não podem – nem devem – ficar restritas a março. A desigualdade estrutural de gênero precisa ser evidenciada, debatida e combatida o ano inteiro. Todo dia.
Quando olhamos para os números, verificamos que o percentual de mulheres em cargos eletivos está muito aquém, não atingindo nem mesmo os 20%: 16% são vereadoras, 15% são senadoras, deputadas federais e deputadas estaduais, 12% são prefeitas e há apenas apenas uma governadora.
Enquanto isso, no universo das prefeituras das capitais, 28% dos cargos de primeiro escalão (secretarias municipais) são ocupados por mulheres. Portanto, os outros 72% são preenchidos por homens.
Por que precisamos de mais representação das mulheres nos altos escalões do serviço público?
Essas e outras desigualdades foram discutidas no webinar “Liderança Feminina Administração Pública – Por que precisamos de mais mulheres nos altos escalões do serviço público?”, promovido pela Rede Mulheres Públicas com apoio do Centro de Liderança Pública. Contamos com a participação de Camila Guimarães (servidora pública estadual), Gabriela Lotta (professora e pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas) e Graziella Testa (professora e doutora em Ciência Política).
Em uma hora e meia de debate e diante de uma plateia virtual formada por quase 100 pessoas, jogamos luz sobre alguns aspectos. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), por exemplo, revela que 59% dos servidores públicos federais são mulheres. Em média, os servidores públicos brasileiros (homens) ganham R$ 5 mil. Já as mulheres, R$ 3,7 mil.
Gabriela Lotta, que também é professora do Master em Liderança e Gestão Pública, do Centro de Liderança Pública, chamou a atenção que tal desigualdade se reproduz em todos os poderes e em todos os níveis de governo: alguém pode dizer que é porque os homens estão entrando nos concursos que ganham mais. Contudo, estamos tratando de uma questão complexa, logo é imperativo seguirmos adiante com as hipóteses: por que os homens passam em concursos que pagam mais e por que as mulheres passam em concursos que pagam menos? Aqui temos dois pontos importantes.
O primeiro é a forma como a sociedade se organiza para dar condições ao homem passar em carreiras com remunerações mais altas, ou seja, enquanto à mulher são imputadas as responsabilidades dos afazeres domésticos, ao homem lhe sobra tempo para outras atividades, como o estudo. Já pela ótica dos cargos públicos, as profissões ligadas ao cuidado, historicamente ocupadas pelo público feminino, são menos valorizadas e com remuneração menor.
O Estado precisa ser reflexo e representação da sociedade
A pesquisadora considera que é importante termos mulheres no poder simplesmente por uma questão simbólica: o Estado tem de representar a sociedade. Se somos uma maioria na sociedade, a representação das mulheres precisa acontecer nos cargos de poder. É muito importante também que as mulheres que estão na base do trabalho no serviço público se vejam representadas por quem está no topo e entendam que os lugares de poder também são para elas.
Ter mulheres em cargos de liderança gera vários efeitos concretos, destaca Gabriela. Pesquisas mostram que, quando há mulheres no poder, há menos rotatividade de profissionais, menos conflitos e mais cooperação entre os profissionais, mais lideranças transformacionais e menos assédios moral e sexual. Além disso, quando temos mulheres em cargos de liderança em organizações em que a maioria dos servidores são mulheres, essas instituições têm performance melhor, do que quando homens lideram a maioria formada por mulheres.
Níveis de corrupção diminuem com a representação das mulheres na administração pública
Graziella Testa, professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da FGV, não apenas corrobora com o argumento de Gabriela Lotta, de que as mulheres devem ocupar altos cargos apenas pela questão de justiça social, como traz também outras evidências dos impactos positivos para a coletividade.
O primeiro argumento é que mulheres em altos cargos políticos substituem homens menos qualificados. Nos países em que a política de cotas foi implementada, o nível dos eleitos subiu, sendo eles mais graduados do que o pré-conceito defendia.
Além disso, a presença de mulheres na administração pública reduz consideravelmente o nível de corrupção daquelas instituições, já que desarticulam as redes existentes, bem como diminuem a probabilidade de suborno. Por outro lado, a presença de altos graus de corrupção é um obstáculo para o avanço político delas.
A cientista política pontua que também é importante destacar as diferenças das políticas públicas formuladas por mulheres. No Brasil, municípios que tiveram uma mulher eleita apresentam maior porcentagem de consulta pré-natal e menor porcentagem de nascimentos prematuros. Há um olhar mais atento para ações que impactem a melhora nos serviços de educação voltadas à primeira infância, saúde primária e infraestrutura. Os fatos recentes demonstram que países governados por mulheres tiveram políticas de combate à Covid-19 mais bem sucedidas, devido ao modo como conduziram seus países.
Políticas mais eficientes em prol da equidade de gênero e raça se fazem necessárias
Gestora pública, Camila Guimarães revela que se identificou como mulher negra em 2018, quando estava há um tempo considerável no cargo de diretora:
“Cheguei onde queria chegar. E agora, você vai fazer o quê? Dentro da Secretaria não tinha mais onde ir. Não tenho ninguém que possa me levar a outros pontos”. Com uma fala recheada de frases destacáveis, ela compartilhou o motivo pelo qual sempre gostou da área pública: “porque em todos os locais em que atuei tinham pessoas negras.”
Mesmo não ocupando posições de liderança, o sentimento de pertencimento sempre esteve presente, aspecto esse que não se refletiu no âmbito privado.
Camila poderia ser a token da coordenadoria da Secretaria em que trabalha, ou seja, por ser a única diretora, mulher e negra, o sistema poderia isolá-la tornando sua atuação inexpressiva ou suas ações a tornaria uma insider e todo o seu repertório seria deixado de lado nas formulações de políticas públicas. No entanto, ela revela que a superação tem sido constante e diária, sendo que a sua busca por crescimento profissional não para. Hoje seus objetivos são bem definidos: “nesta busca por novos caminhos, encontrei mulheres maravilhosas que me ajudaram no autoconhecimento e a não desistir de lutar por uma carreira pública com equidade, mostrando que é possível.”
E, dentre as provocações que a gestora pública trouxe, eis uma das mais expressivas: “outras mulheres vieram antes de nós, agora temos de dar continuidade na caminhada com passos curtos e objetivos específicos, gerando políticas mais eficientes que visem a equidade de gênero e raça.”
E, para isso, a batalha pela representação das mulheres precisa ser travada muito além de março.
Patrícia Florêncio é gestora pública e mestre em e-gov e inovação. Aline Mendes é jornalista, foi repórter e editora de jornais no Rio Grande do Sul e hoje atua como gestora pública. Ambas são Master em Liderança e Gestão Pública, pelo Centro de Liderança Pública, das turmas 6 e 7, respectivamente, que contam com percentual maior de mulheres em suas composições.
Elas também são cofundadoras da Rede Mulheres Públicas, com olhar atento ao serviço público e seus desafios de gênero.