Há um hiato entre aquilo que é e aquilo que deve ser. O debate, antigo e ao mesmo tempo atualíssimo sobre esta diferença, já serviu para amparar discussões sobre atraso moral e avanço tecnológico, sobre o desejável e o não desejável, sobre moral e, portanto, sobre ética. Destacadamente, Eduardo Giannetti avançou sobre tal tópico em seu livro de estreia no mercado editorial brasileiro, (Vícios Privados, Benefício Públicos? A Ética na Riqueza das Nações.), nos presenteando com interessantes considerações acerca do tema. Eis que, em novo contexto, ressurge tal diferença, agora vinculada ao improvável debate sobre o conceito de meritocracia.
Improvável, pois, salvo minha frágil memória, uma das mais significativas bandeiras daqueles que se opunham à sociedade estamental e rigidamente hierarquizada era a eliminação dos valores regidos pelo nascimento e não pelo trabalho, porta de entrada ao que consideravam o mundo dos direitos e não o dos privilégios. Trabalhe e serás reconhecido pela sociedade como portador dos direitos universais, independentemente de ser membro deste ou daquele grupo social estabelecido pela tradição e pelo nascimento. Direitos que, conforme a História avançou, transformaram-se em jurídicos (todos são iguais perante a lei), políticos (Sufrágio Universal), sociais (trabalhistas) e, em tempos mais próximos, econômicos (renda mínima) e, porque não, urbanos (mobilidade) e ambientais.
Em princípio, lá no século XVIII, tais considerações sobre o que era a sociedade e como ela deveria ser animou o fervoroso processo de construção da nação norte-americana, em meio às indefinições acerca do modelo político, religioso e moral que teria o país. Em suma, discutiam a viabilidade de um país a partir da concepção de que a propriedade era o que igualava seus indivíduos, por um lado, e que a propriedade seria restrita e, portanto, um diferenciador entre eles, por outro. Esta cizânia, fortemente simbolizada pela escravidão, esteve na origem da Guerra Civil de 1861-65 e transpassa a história daquele país. A vitória do Norte sobre o separatismo do Sul, assim como o fim da escravidão em 1863, acabou por impor o modelo dos vitoriosos sobre toda a nação. A propriedade seria algo que, de tão simples de ser acessada, teria o papel de simbolizar a ideia de igualdade entre os indivíduos. Não à toa, na lei maior do país está registrado que 'todos os homens têm direito à liberdade, à propriedade e à busca da felicidade', uma versão de 'liberdade, igualdade e fraternidade'. Notemos que 'propriedade' e 'igualdade' vem logo depois de 'liberdade' em ambos os casos.
Certamente que, ao longo de mais de dois séculos após tal formulação, não foi a propriedade que simbolizou a igualdade entre indivíduos norte-americanos. Nem todos eles acessaram de fato a propriedade, mesmo após a ampliação – ainda inacabada – dos direitos de mulheres e negros durante o século XX. Foi, em seu lugar, a ideia de que há um acesso mínimo, que iguala a todos na origem, a alguns direitos que, ao longo da trajetória do país, se constituíram no direito à educação e à participação política. Ou seja, assim como lembravam Engerman e Sokoloff em artigo seminal (Institutions, Factor Endowments and Paths of Development), a coesão social e a igualdade entre os indivíduos norte-americanos foram minimamente preservadas pelo acesso que a esmagadora maioria tem à educação formal e ao sufrágio. Para o primeiro caso, a educação, os dados são surpreendentes: em 1910, aproximadamente 92% da população do país acima de dez anos era alfabetizada. 95% entre os brancos e 70% entre os negros. No Brasil, em 1920, apenas 30% da população acima de dez anos era alfabetizada.
Assim, um princípio fundamental entre os norte-americanos é o de que se todos têm acesso a algo que os iguala, o resultado que cada um terá ao longo da vida será relativo ao seu mérito. Os atuais debates sobre as brechas usadas por grupos ou indivíduos que distorcem tal valor, por exemplo, em relação à qualidade da educação oferecida desigualmente e, pior, ao acesso às decisões públicas que muitas vezes são capturadas por interesses particulares, voltam-se não à negação do princípio, mas sim, à sua preservação ante as forças que podem distorcê-los. Não há igualdade no acesso quando 99% tem 1% da riqueza e o outro 1% tem domínio sobre 99% da mesma riqueza. Ou seja, o desconforto relativo a essa situação não nega a meritocracia e sim a confirma como valor central daquela sociedade.
No Brasil, embalada pelas propostas de criação e ampliação de cotas, em princípio nas universidades, mas já incorporadas por órgãos públicos e mesmo por empresas privadas, há uma gritaria contra o conceito de meritocracia por significativa parcela da sociedade. As argumentações são pertinentes quando avaliam que não é justo – e, portanto, ético – que uma sociedade historicamente tão desigual possa avaliar os resultados obtidos por indivíduos como sendo exclusivamente derivados de méritos pessoais. Em suma, e novamente frisando, numa sociedade tão desigual, os mais privilegiados teriam uma incomensurável maior facilidade de acessar os direitos que fazem, ao longo de suas trajetórias, diferença positiva no sucesso pessoal e profissional que obterão. O contrário, verdadeiro, é que os menos privilegiados terão resultados considerados de menor sucesso, pois não acessam ou acessam pouco aquilo que faria diferença positiva em suas trajetórias. Ou seja, meritocracia em uma sociedade tão desigual, em que nada em princípio iguala os indivíduos, seria uma 'ideia fora do lugar'.
O problema é que a meritocracia não é, necessariamente, uma régua que mede resultados para hierarquizá-los. Ninguém, em sã consciência – ou portadora de um mínimo de honestidade intelectual – avalia que piores resultados escolares e/ou profissionais são exclusivamente derivados de (de) méritos pessoais e vice-versa. Contudo, abandonar ou rechaçar o conceito de meritocracia como fundamental a uma sociedade moderna pode ser, à avessa do que muitos julgam, reafirmar uma sociedade de privilégios. Em resumo, não é o conceito de meritocracia que está equivocado, e sim a histórica desigualdade que nos mancha. A meritocracia é antes de tudo um valor moral que insiste em condecorar aqueles que, independentemente de cor da pele, posição social, origem, opções religiosas, ideológicas, filosóficas ou sexuais, dedicam-se com afinco aos estudos, às oportunidades e ao trabalho. Se o País não nos dá, em sua trajetória histórica, elementos que possam servir de nivelamento entre os indivíduos a ponto de igualá-los, o problema não é do conceito, e sim desta sociedade. Ou seja, se o país é assim, não deixemos de querer que ele deva ser diferente. A meritocracia não nos serve para avaliar os resultados, mas sim como um valor que pode nos ajudar a escapar de uma sociedade desigual na qual não queremos viver.
O professor Vinícius de Bragança Müller e Oliveira é doutorando em História Econômica pela USP, Mestre em Economia pela UNESP e bacharel em História pela PUC-SP. Docente de História Econômica do Insper, atua há 15 anos como coordenador e/ou professor na Educação Básica. Professor Vinícius dará aula de "Liderança e Dilemas Éticos" no Master em Liderança e Gestão Pública – MLG, programa de pós-graduação oferecido pelo CLP.
Foto: Rachel Caiano | Flickr