Esse conteúdo faz parte do Blog do CLP. Esse é um espaço onde as lideranças formadas pelos cursos do CLP compartilham boas práticas, aprendizados e soluções. Que nesse caso, foram criadas ou otimizadas através da participação no Master em Liderança e Gestão Pública – MLG. O texto da líder MLG, Renata Vieira da Motta, debate a guerra cultural, os desafios na gestão da cultura e a necessidade em dar continuidade à formulação de políticas e ações voltadas ao patrimônio. Confira:
Nesta última semana, com a demissão do Secretário Nacional de Cultura, Roberto Alvim, e o “noivado” com a atriz Regina Duarte, a cultura está novamente em destaque na mídia nacional. Mudanças contínuas na gestão do setor cultural federal tem sido uma constância. Desde a criação do Ministério da Cultura (MinC) em 1985, durante o governo José Sarney até o final da gestão de Michel Temer em 2018, tivemos 21 ministros a frente da área.
Em 2016, durante o governo interino de Michel Temer o MinC, por um breve período, foi extinto e incorporado ao Ministério da Educação, mas a decisão foi revertida. Em 2019, Jair Bolsonaro voltou a extinguir o MinC, incorporando suas atribuições ao novo Ministério da Cidadania. Após 10 meses, em novembro passado, a Secretaria Especial da Cultura foi transferida para a pasta de Turismo, ocasião em que Roberto Alvim foi nomeado como secretário.
A área da cultura apresenta dificuldades históricas, mas o atual governo não está apenas deixando de tratá-las, mas contribuindo significativamente para piorá-las. A repercussão em torno de Roberto Alvim rompeu a bolha da área cultural, explicitando para diferentes setores da sociedade a guerra cultural travada na esfera federal e os riscos estabelecidos para a continuidade da formulação de políticas, programas, projetos e ações voltadas ao patrimônio e cultura nacionais.
Guerra cultural e a moralização do debate político
No âmbito federal, a Secretaria Especial da Cultura inclui órgãos colegiados e conta com sete entidades vinculadas, que abrangem campos de atuação determinados. Trata-se de quatro fundações – Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), Fundação Cultural Palmares (FCP), Fundação Nacional de Artes (Funarte) e Fundação Biblioteca Nacional (BN) e três autarquias – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e Agência Nacional do Cinema (Ancine).
A indicação e a ruidosa demissão de Roberto Alvim foi uma reprodução aguda do primeiro ano do governo Bolsonaro, marcado por polêmicas e embates jurídicos em torno das nomeações dos novos gestores de várias das entidades vinculadas. De forma geral, houve questionamento quanto às qualificações e capacidade de gestão dos novos gestores indicados e a preocupação com a fragilização técnica dessas entidades.
O polêmico vídeo de Alvim com referência ao ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels explicitou o contexto atual de guerra cultural, isto é um conflito na dimensão da cultura, com negação da autonomia da arte e a elevação de pautas mais morais. Fernando Gabeira, no artigo “Ascensão e queda de Alvim”, apresenta bem esse cenário polarizado, condenando a redução da cultura a mera propaganda partidária e indicando ser “irreal esperar uma arte conservadora a partir do governo, ou uma arte revolucionária a partir de partidos de esquerda”, afirmando a importância do caminho do livre embate de ideias na cultura.
A atenção ampla a esse cenário de guerra cultural importa, porque se estabelece não somente uma disputa entre concepções políticas, mas uma luta inconciliável pela identidade da nação. Define-se um contexto de moralização do debate público e político, em que a abordagem passa ser a partir do ponto de vista moral e religioso, desviando de questões técnicas e programáticas. A gestão da cultura engloba desafios e complexidades que são sublimados nesse processo polarizado e moralizante.
A montagem do novo governo e o desmonte institucional da cultura
Nos últimos meses, a preocupação quanto a um desmonte institucional da cultura estabeleceu-se com as indicações do segundo escalão da Secretaria Especial de Cultura estabelecidas a partir de um perfil ideológico e não técnico. Os ruídos e reações foram se avolumando e seguem abaixo algumas das principais repercussões.
Em dezembro de 2019, houve as nomeações dos novos presidentes da Fundação Cultural Palmares (PCP), Fundação Nacional de Artes (Funarte) e Fundação Biblioteca Nacional, com repercussões negativas pelos perfis ideológicos e inexperiência técnica. Em especial, a nomeação de Sérgio Nascimento de Camargo para a FCP causou uma onda de reações por declarações consideradas racistas, que culminaram na suspensão da nomeação por um juiz da 18ª Vara Federal do Ceará. O governo recorreu da determinação do juiz, mas ainda não houve decisão judicial sobre o recurso.
O novo presidente da Funarte, Dante Mantovani, também recebeu críticas por suas declarações que relacionavam rock, aborto e satanismo. Rafael Nogueira, que substituiu Helena Severo a frente da Biblioteca Nacional, foi julgado pela inexperiência na área e pelas manifestações monarquistas. Já a Fundação Casa de Rui Barbosa teve, não apenas a presidência substituída sem considerar as sugestões da equipe de pesquisadores – como tradicionalmente ocorria na instituição –, mas também demissões dos principais chefes de pesquisa, profissionais experientes e com alta qualificação acadêmica.
Para a análise do impacto das mudanças nos corpos técnicos do setor cultural, gostaria de focar o caso do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Criado em 1937, com envolvimento de personalidades como Gustavo Capanema, Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade, o Iphan tem a função de promover e proteger os bens culturais nacionais. É parte importante da institucionalização da cultura no país e altamente relevante para a preservação do patrimônio histórico, arqueológico e artístico nacional.
Entre servidores comissionados e efetivos
O Iphan é formado por um corpo de servidores com formação compatível com as diversas áreas do patrimônio material e imaterial. No último trimestre de 2019, o governo federal começou a substituir os superintendentes regionais do instituto por integrantes de sua base aliada, sem formação ou experiência na área. Houve troca nos estados de Minas Gerais, Paraná, Goiás, Mato Grosso do Sul (posteriormente revogada) e Distrito Federal. As substituições foram efetuadas à revelia da presidente do órgão Kátia Bogéa, que acabou sendo, no final do ano, exonerada do cargo. O arquiteto Flávio de Paula Moura foi, então, indicado para substituí-la, mas até o momento não foi nomeado.
Embora tenha poucos recursos econômicos, o interesse político no Iphan está ligado ao licenciamento de empreendimentos, que podem envolver bilhões de reais. Nesse sentido, não é que anteriormente não houvessem pressões políticas para o preenchimento dos cargos comissionados, mas havia certa razoabilidade nas substituições e a maioria dos superintendentes eram escolhidos entre os técnicos dos órgãos.
Com um orçamento menor e superintendentes menos qualificados para a função o impacto pode ser irreversível, já que obras e projetos de restauro poderão ser paralisados e licenciamentos poderão ser autorizados inadequadamente.
O possível novo presidente, desconhecido de especialistas da área, teve sua qualificação contestada por diversas entidades do setor e pelo deputado federal e ex-ministro da Cultura Marcelo Calero. Deve-se lembrar que Calero deixou o MinC após pressão do então ministro Geddel Vieira Lima para que liberasse a construção do projeto imobiliário La Vue Ladeira da Barra, nos arredores de uma área tombada em Salvador. Atualmente, a presidência do órgão está interinamente ocupada por Robson Antônio de Almeida, diretor do Departamento de Projetos Especiais.
Os riscos na gestão do patrimônio
O Iphan tem a grande responsabilidade pela preservação do patrimônio cultural brasileiro. Material e imaterial, estão incluídos todos os sítios considerados patrimônio mundial pela Unesco, como as cidades de Ouro Preto, o Plano Piloto de Brasília e o Cais do Valongo no Rio de Janeiro. O seu presidente precisa ter o discernimento e o conhecimento dos temas do patrimônio para poder entender o impacto positivo ou negativo de um determinado projeto. E outra, necessita ser subsidiado por pareceres de diferentes áreas de conhecimento, elaborados por técnicos da entidade.
Em 2018, após um longo período de demandas e negociações, o Iphan obteve a autorização para realização de concurso público para provimento de 411 vagas de nível médio e superior. A realização do concurso foi uma prioridade da gestão da então presidente da entidade Kátia Bogéa, de forma a recompor o quadro de servidores. O Iphan possui 27 superintendências, 28 escritórios técnicos e, em 2018, contava com 678 servidores, dos quais 480 se aposentariam até 2020.
Desde 2013, o Iphan encaminhava, anualmente, pedidos ao Ministério do Planejamento de novos concursos públicos. A falta de mão de obra vinha comprometendo a realização dos trabalhos. Em 80 anos da instituição só tinham sido realizados dois concursos públicos e, em 2018, existiam 516 cargos vagos. Nesse ano, o certame foi finalmente previsto no orçamento do governo federal. Com provimento de cargos de Analista I, Técnico I e Auxiliar Institucional, de nível médio e superior, a remuneração ofertada era de R$ 3.219,97 a R$ 5.035,29. Os candidatos para os cargos de nível superior começaram a ser nomeados em abril de 2019 e, em agosto, o Ministério da Economia autorizou a nomeação de 131 candidatos de nível médio.
O concurso do Iphan foi uma conquista para a área de patrimônio, ainda que o valor das remunerações previstas para cargos de nível superior tenham sido questionadas por conselhos de classe e ofuscado pelas recentes substituições dos superintendentes regionais sem consideração do perfil e qualificações técnicas. Como destacado acima, neste momento de mudança de governo em que se estabeleceu uma perspectiva de guerra cultural, as preocupações quanto ao desmonte institucional da cultura passam por essas ruidosas exonerações nos cargos comissionados; mas não só. O ruído encobre os desafios a serem enfrentados por um ente institucional complexo como o Iphan.
O concurso recentemente realizado está viabilizando a reposição emergencial da estrutura técnica e administrativa do instituto, mas sem instrumentos gerenciais estratégicos e/ou táticos cabíveis à administração de pessoal, necessária para impedir distorções e ampliar a qualidade dos serviços prestados pelo órgão. Em um ano em que se prevê a realização dos debates sobre a Reforma Administrativa, a ausência de análise do arranjo institucional, da organização das carreiras e remunerações, alocação funcional e gestão do desempenho, entre outros aspectos relevantes do debate, parecem retirar do Iphan a possibilidade de uma atualização necessária da gestão administrativa e de recursos humanos, que como aponta o Professor Fernando de Souza Coelho, são fundamentais para a modernização da entidade a partir das premissas da gestão por resultados, responsividade e accountability.
No Iphan, a ausência de critérios técnicos nas nomeações dos cargos comissionados, somada aos inúmeros dilemas na área de gestão de pessoas na administração pública nacional, definem uma arena altamente conflitiva e uma preocupação quanto o agravamento, no curto e médio prazo, dos riscos na gestão do patrimônio e cultura nacionais.
A gestão do patrimônio e da cultura não podem ficar reduzidos a embates morais de um governo, devendo ser tratadas na sua complexidade e especificidade. O inventário, a proteção, a preservação e a ampliação do acesso ao patrimônio material e imaterial são ações fundamentais para o (re)conhecimento da nossa diversidade cultural e conformação da identidade nacional.
Para tal, há a necessidade de uma política de consolidação e aperfeiçoamento da estrutura organizacional do Iphan, que possa atender não apenas a administração central, mas também as superintendências regionais.
O foco na formação e no gerenciamento de pessoas, com adequação quantitativa e qualitativa de um corpo técnico consistente com as necessidades das diferentes regiões, mas também aproveitamento dos servidores com maior experiência e preparo para as funções, bem como métricas de avaliação de qualidade, é estratégico para a implementação de uma gestão que possibilite que o patrimônio brasileiro seja inserido no processo socioeconômico do país, reconhecido em sua diversidade e com seus valores culturais amplamente apropriados pelos cidadãos.
*Com a colaboração de Bruno Magalhães e Rosandra Padron Armada
Renata Vieira da Motta, é doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e líder pós-graduada pelo Master em Liderança e Gestão Pública – MLG. Em 2017, assumiu a assessoria especial da Reitoria da Universidade de São Paulo para área de museus e acervos. No período de 2011 a 2016 foi Diretora do Sistema Estadual de Museus (SISEM-SP) e Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. É Presidente do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus – ICOM Brasil.