Cinco anos do Novo Marco Legal do Saneamento Básico
Em julho de 2025, completam-se cinco anos da promulgação da Lei nº 14.026/2020, conhecida como Novo Marco Legal do Saneamento Básico (NMSB). Essa legislação, representando uma atualização significativa em relação à Lei nº 11.445/2007, estabeleceu metas ambiciosas para a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033. Seu objetivo principal é garantir que 99% da população brasileira tenha acesso à água potável e 90% ao esgoto coletado e tratado, buscando reverter décadas de atraso nesse setor crucial para o desenvolvimento social e econômico do país.
O saneamento básico é um serviço essencial com implicações diretas na saúde pública, qualidade ambiental e desenvolvimento econômico. Apesar disso, o Brasil ainda enfrenta um grande atraso nesse setor em comparação com padrões internacionais. Dados recentes mostram que apenas 56% dos brasileiros têm acesso a esgotamento sanitário adequado, enquanto quase 85% recebem abastecimento de água, com disparidades regionais significativas, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, onde os índices permanecem críticos.
O Novo Marco Legal buscou transformar essa realidade, promovendo a abertura do setor para maior participação privada através de concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs). Além disso, a legislação fortaleceu o papel regulador da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), estabelecendo padrões uniformes para o setor e exigindo comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores para atingir as metas estabelecidas.
Contudo, a implementação do NMSB encontrou desafios consideráveis, com muitos municípios longe de atingir metas estabelecidas. Em 2023, o governo federal editou o Decreto nº 11.598, flexibilizando algumas das obrigações originalmente previstas pela lei, o que gerou controvérsias e preocupações quanto à possibilidade de se alcançar as metas gerais. Aproximadamente 1,7 mil municípios foram dispensados de apresentar comprovação econômico-financeira, potencialmente afetando a universalização do acesso.
Ainda assim, desde a implementação do novo marco, houve avanços expressivos nos locais onde ocorreram PPPs e concessões. Estas iniciativas trouxeram investimentos significativos, melhorias na infraestrutura e avanços concretos em municípios antes com baixa cobertura de saneamento básico. Apesar desses resultados positivos, muitos municípios brasileiros permanecem em situação de inércia, sem avançar na implementação efetiva da legislação.
Por fim, é fundamental destacar que parte dessa inércia decorre de dificuldades administrativas e técnicas das próprias gestões municipais. Muitos prefeitos encontram desafios significativos mesmo para compreender integralmente as exigências e oportunidades trazidas pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico, dificultando ainda mais a implementação efetiva das mudanças necessárias e comprometendo a universalização dos serviços em prazo razoável.
A situação do Saneamento
O Brasil apresenta um cenário crítico no que se refere ao saneamento básico, com apenas cerca de dois terços (65,4%) da população com acesso simultâneo a água encanada e esgoto ligado à rede geral em 2023, como mostra o Gráfico abaixo. Esse dado revela uma realidade ainda distante das metas de universalização estabelecidas pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico. Seguindo a tendência após sua promulgação, em 2033, apenas cerca de 71% da população teria acesso à rede de esgoto. A meta, de 90%, seria alcançada apenas em 2066.
Percentual da população com acesso à água encanada e rede de esgoto

Comparado internacionalmente, o desempenho brasileiro é ainda mais preocupante. Em 2015, o Brasil possuía aproximadamente 45% da população com tratamento de esgoto, posição semelhante à do México e significativamente à frente da Índia, que tinha apenas 37%. No entanto, em apenas sete anos, o cenário mudou drasticamente: em 2022, o México ampliou consideravelmente seu acesso, ultrapassando 62% e chegando perto das Filipinas, enquanto a Índia, partindo de uma posição bem inferior, conseguiu superar o Brasil, alcançando 52,1%, contra nossos 49,6%. Esses dados sinalizam claramente que não apenas estamos defasados em relação ao mundo, mas também estamos perdendo terreno em relação a países com desafios sociais e econômicos comparáveis.
População com acesso à água e esgoto tratado (%) – países em desenvolvimento

Além dessa comparação internacional desfavorável, as disparidades regionais dentro do Brasil são gigantescas. Ao se observar o mapa da distribuição da população com acesso à rede geral de esgoto, fica evidente uma divisão clara entre as regiões Norte e Nordeste e o Centro-Sul. Enquanto regiões do Sul e Sudeste apresentam índices relativamente altos de acesso, Norte e Nordeste permanecem com percentuais significativamente baixos, destacando uma desigualdade estrutural profunda no acesso ao saneamento básico.
Percentual da população com acesso à água encanada e rede de esgoto por Estrato Geográfico (2023)

Vale notar que, apesar dessa tendência geral, algumas exceções regionais são notáveis. O Estado de Pernambuco, além das cidades de Salvador e Palmas, destaca-se positivamente com altos índices de cobertura, mesmo inseridas em regiões majoritariamente deficientes. Por outro lado, áreas no Oeste de Santa Catarina, junto aos seus entornos nos Estados vizinhos, tradicionalmente vistas como mais desenvolvidas, mostram índices surpreendentemente baixos, indicando que tais desafios ocorrem mesmo em regiões tradicionalmente mais privilegiadas.
Quando se analisam as tendências por região e tipo de cidade, as disparidades se tornam ainda mais evidentes. Há uma clara diferença entre capitais e demais cidades, especialmente fora das regiões metropolitanas. No Norte e Nordeste, o acesso à rede geral de esgoto é extremamente baixo, não alcançando sequer um terço da população em áreas não metropolitanas. Além disso, a tendência de melhora nesses locais é preocupantemente lenta, sugerindo que, sem intervenções robustas, as disparidades podem persistir e até se agravar.

Esses dados ressaltam a importância de acelerar a implementação das medidas previstas no Novo Marco Legal do Saneamento Básico. O desafio para os próximos anos será garantir que as iniciativas já implementadas, como PPPs e concessões, se expandam e se aprofundem de forma eficiente, garantindo investimentos adequados em infraestrutura e gestão. Somente com políticas públicas assertivas e esforços coordenados entre União, estados e municípios será possível reverter a tendência negativa e garantir acesso universal a esse serviço básico e essencial para todos os brasileiros.
A situação do Saneamento
O Decreto nº 11.598/2023 introduziu uma importante e controversa flexibilização nas exigências do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, especialmente no que diz respeito à comprovação da capacidade econômico-financeira das concessões e prestadores dos serviços de saneamento. Inicialmente, o Novo Marco estabeleceu que os prestadores deveriam demonstrar capacidade econômica e financeira suficiente para atingir as metas estipuladas para universalização até 2033, com o intuito de assegurar que os contratos fossem exequíveis e que os serviços fossem efetivamente entregues à população.
Pela Constituição Federal de 1988, os municípios têm a competência legal para prover os serviços de saneamento básico para a população. Entretanto, tradicionalmente, a maioria das empresas que executam esses serviços são estaduais, o que frequentemente gerou conflitos e ambiguidades no estabelecimento das competências entre os entes federativos. Durante muitas décadas, centenas de municípios mantiveram contratos com companhias estaduais que se renovavam automaticamente, sem a definição clara de metas ou qualquer tipo de acompanhamento efetivo da qualidade dos serviços prestados.
O Novo Marco Legal do Saneamento Básico buscou justamente enfrentar essa situação histórica ao estabelecer metas nacionais claras e exigir que as empresas prestadoras comprovassem capacidade econômico-financeira adequada. Dessa forma, os municípios seriam estimulados a revisar e reavaliar os contratos existentes com as companhias estaduais, garantindo maior eficiência e qualidade na prestação dos serviços de saneamento. Nesse sentido, o Decreto nº 11.598/2023 representou um passo na direção contrária às intenções originais do Novo Marco, ao flexibilizar justamente essas exigências fundamentais.
Com a edição do decreto, cerca de 1,7 mil municípios foram isentos da obrigatoriedade de apresentar a documentação exigida. Dos municípios que mantiveram a necessidade de comprovação, 2,9 mil foram classificados como totalmente regulares e 344 como regulares, mas com restrições. No entanto, segundo o Instituto Trata Brasil, mais de 500 municípios tiveram seus contratos classificados como irregulares, sem perspectiva imediata de regularização. Esses municípios, que somam quase 30 milhões de habitantes, enfrentam agora restrições no acesso aos recursos federais destinados à expansão e melhoria dos serviços de saneamento básico.
A flexibilização proposta pelo decreto foi apresentada pelo governo como uma oportunidade adicional para que as companhias estaduais pudessem adequar-se às exigências de comprovação econômico-financeira. Contudo, gerou preocupações de que pudesse representar um benefício excessivo às empresas estaduais, prejudicando o princípio básico da segurança jurídica e regulatória. Essa mudança nas regras, feita após a definição inicial das exigências, sinaliza uma vulnerabilidade regulatória que pode desestimular investimentos e criar precedentes para futuras pressões por novas flexibilizações.
A situação é especialmente crítica nos municípios considerados irregulares, nos quais os índices de saneamento estão significativamente abaixo da média nacional. Nessas localidades, apenas cerca de 70% da população tem acesso à água, e menos de 30% são atendidos com coleta e tratamento do esgoto. Além disso, há perdas expressivas de água nos sistemas de distribuição, chegando a quase 50%, o que compromete ainda mais a eficiência e sustentabilidade econômica dos serviços prestados.
Dessa forma, é fundamental que, uma vez estabelecidas as metas e exigências regulatórias, elas sejam mantidas de forma consistente. Isso permite que os agentes econômicos tenham previsibilidade sobre as regras aplicáveis, garantindo segurança jurídica e estabilidade para investimentos necessários à universalização dos serviços. Alterações frequentes, como as promovidas pelo Decreto nº 11.598/2023, além de gerar instabilidade, podem comprometer a credibilidade do Marco Legal do Saneamento e prejudicar significativamente os esforços nacionais para alcançar as metas de universalização estabelecidas para 2033.
Conclusão
Cinco anos após a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, o Brasil ainda enfrenta significativos desafios para alcançar a universalização dos serviços de água e esgotamento sanitário. Atualmente, mais de 32 milhões de brasileiros seguem sem acesso à água potável, enquanto mais de 90 milhões não têm esgotamento sanitário adequado. Esses números demonstram claramente a gravidade da situação e o longo caminho que ainda precisa ser percorrido para alcançar as metas propostas pela legislação vigente.
O Novo Marco Legal estabeleceu objetivos claros e ambiciosos para universalizar o saneamento básico até 2033, exigindo uma cobertura de 99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgoto. No entanto, o atual ritmo de investimentos e avanços sugere que o Brasil pode alcançar essas metas somente em 2070, ou seja, com um atraso de quase quatro décadas. Para reverter esse cenário, são necessários investimentos anuais significativos, superiores ao dobro da média aplicada nos últimos anos.
A introdução do Decreto nº 11.598/2023, que flexibilizou algumas das exigências do Novo Marco, trouxe preocupações adicionais sobre o cumprimento das metas. Ao isentar diversos municípios da comprovação econômico-financeira necessária para garantir a viabilidade dos contratos, o decreto colocou em risco a própria essência do marco regulatório, podendo desencadear insegurança jurídica e desestimular investimentos privados no setor, fundamentais para a expansão necessária da infraestrutura.
Por outro lado, iniciativas positivas surgiram ao longo desses cinco anos, principalmente no âmbito das Parcerias Público-Privadas (PPPs) e concessões regionais. Esses modelos têm demonstrado capacidade de atrair investimentos robustos e promover melhorias efetivas no saneamento básico, como observado em diversas regiões do país. No entanto, tais iniciativas precisam ser ampliadas e fortalecidas para impactar significativamente os índices nacionais de cobertura.
A regionalização dos serviços de saneamento básico pode ser uma estratégia crucial para viabilizar economicamente a expansão dos serviços, especialmente em municípios pequenos ou com baixa capacidade de investimento. Ao agruparem-se em blocos regionais, os municípios conseguem ganhos de escala, eficiência operacional e sustentabilidade econômica, facilitando o acesso a recursos e aumentando as chances de cumprimento das metas estabelecidas.
Para que o Brasil consiga avançar efetivamente rumo à universalização do saneamento básico até meados da década de 2030, é imperativo que sejam mantidas as exigências regulatórias atuais, garantindo a previsibilidade necessária para atrair investimentos consistentes. Além disso, é fundamental que haja um compromisso sólido dos gestores públicos municipais, estaduais e federais na implementação de políticas efetivas e na criação de uma governança transparente e eficiente para o setor. Somente com ações coordenadas, investimentos robustos e respeito às regras estabelecidas será possível transformar o atual cenário e garantir a universalização do saneamento básico, essencial para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população brasileira.
Por Daniel Duque, gerente da Inteligência Técnica do CLP


