O teto de gastos do funcionalismo e o projeto do Executivo sobre os supersalários

O teto de gastos do funcionalismo e o projeto do Executivo sobre os supersalários

Ao longo dos anos 2010, o teto de gastos do funcionalismo público passou por sucessivas expansões, muitas vezes superando os índices de inflação registrados no período. De acordo com as leis federais vigentes, o valor do teto saltou de R$ 28.059,29 em 1º de janeiro de 2013 para R$ 39.293,32 em 27 de novembro de 2018, e continua em trajetória ascendente até alcançar R$ 46.366,19 a partir de fevereiro de 2025. Embora tenha havido um arrefecimento durante a crise econômica de 2015-16 e, posteriormente, durante os efeitos da pandemia de COVID-19, a tendência geral foi de aumento robusto dos valores máximos de remuneração no setor público, em certos momentos até mesmo acima da inflação acumulada.

Em contrapartida, os salários do setor privado enfrentaram consideráveis reduções reais no mesmo intervalo. A instabilidade econômica, principalmente durante a recessão de 2015-16, e as incertezas geradas pela pandemia, contribuíram para frear o reajuste de salários na iniciativa privada. Enquanto os servidores públicos contavam com leis específicas que garantiam o aumento periódico do teto remuneratório, muitos trabalhadores do setor privado viram seus rendimentos estagnarem ou mesmo diminuírem em termos reais, refletindo assimetrias entre o poder público e a iniciativa privada no período.

Dados da Receita Federal permitem estimar quantos brasileiros adultos recebem rendimentos acima do teto do funcionalismo público, e os números mostram que esse grupo representa uma parcela muito pequena da população. Em 2017 e 2018, por exemplo, apenas 0,8% dos adultos tinham rendimentos que superavam esse patamar; em 2019, o percentual caiu para 0,6%, voltando a subir para 1% em 2022. Na prática, isso significa que aqueles que recebem em torno do teto remuneratório do setor público se inserem de modo consistente entre o 1% mais rico do país, reforçando a exclusividade desse estrato salarial.

Adicionalmente, o valor máximo de remuneração no setor manteve‐se em patamar superior ao dobro da renda tributável bruta média dos 5% mais ricos do país. Em outras palavras, ainda que a remuneração do serviço público tenha sofrido certa defasagem em termos reais entre 2019 e 2022, ela continuou representando uma parcela significativa em comparação ao patamar de renda dos brasileiros no topo da pirâmide. Considerando projeções de um crescimento médio de 4% ao ano para a renda tributável dessa faixa, os reajustes do teto que ocorreram e estão previstos entre 2022 e 2025 vão expandir a distância entre o teto do funcionalismo e a renda média dos 5% mais ricos. De uma relação de pouco mais de 2,7 vezes em 2022, espera‐se chegar a quase 2,85 vezes até 2025. Em síntese, mesmo com as oscilações de poder aquisitivo, o teto do funcionalismo permanece em um nível significativamente superior à renda média dos maiores contribuintes, reforçando seu caráter privilegiado no conjunto dos rendimentos no país.

No entanto, apesar de a Constituição Federal estabelecer um teto remuneratório para o serviço público, não é incomum que, especialmente no Judiciário, diversos servidores recebam vencimentos além desse limite. No Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), por exemplo, levantamento de contracheques de 2024 mostra que apenas 3% dos magistrados ficam dentro do teto de R$ 44 mil brutos, enquanto 97% ultrapassam esse valor. Casos como o do juiz da 6.ª Vara Cível de Governador Valadares, que chegou a ganhar R$ 495,3 mil em um único mês, ilustram a dimensão dos chamados “supersalários”. Em dezembro, a média dos contracheques foi de R$ 214 mil líquidos para os magistrados mineiros.

Grande parte dessas remunerações decorre de pagamentos indenizatórios, verbas complementares e vantagens eventuais, que acabam não sendo contabilizadas dentro do teto constitucional. Esses auxílios – como de moradia, um dos mais comuns – são isentos de Imposto de Renda e se somam às indenizações por férias não gozadas. Muitos magistrados acabam usando apenas parte do recesso a que têm direito e, posteriormente, recebem em dinheiro pelo período restante. Tudo isso está previsto na Lei Orgânica da Magistratura e em legislações específicas, o que tem garantido a permanência desses pagamentos sem a devida limitação.

O Governo Federal, por sua vez, vem tentando regulamentar nacionalmente o catálogo de remunerações indenizatórias, para efetivamente impor o teto constitucional em todos os poderes. Foi com esse propósito que o Executivo enviou um Projeto de Lei (PL) estabelecendo que apenas as verbas indenizatórias previstas em lei complementar de caráter nacional ficariam fora do teto. Contudo, o relator da matéria, deputado Moses Rodrigues, alterou o texto para que a regulamentação seja feita por lei ordinária, que tem trâmite menos rígido e é de mais fácil aprovação. Além disso, acrescentou um dispositivo que mantém o status atual dessas verbas até a aprovação da lei, gerando críticas de parlamentares contrários aos supersalários.

Entidades de classe do Judiciário e de outras carreiras públicas têm feito forte pressão para manter as regras como estão. Um dos pontos de afrouxamento se deve ao fato de que, com a mudança para lei ordinária, há a possibilidade de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) regularem a matéria internamente, com poder de lei acima da ordinária, o que torna ineficazes as tentativas de impor o teto. Dessa forma, a prática de penduricalhos e de valores fora do contracheque principal tende a persistir, fazendo com que boa parte do Judiciário continue recebendo acima do que a Constituição prevê como limite de remuneração.

Em conclusão, o projeto de lei, tal como foi aprovado pela Câmara, perdeu parte de sua eficácia ao substituir a exigência de lei complementar por lei ordinária. Embora o texto original já trouxesse riscos de abrir espaço para a legitimação de diversos “penduricalhos” enquadrados como verbas indenizatórias, ainda assim, haveria uma espécie de freio para a proliferação de novos pagamentos fora do teto. No entanto, com as alterações introduzidas e a possibilidade de resoluções do CNJ e do CNMP prevalecerem sobre a regulamentação, teme-se que nada seja efetivamente alcançado para coibir os supersalários.

Em vez de trazer segurança jurídica e um teto salarial mais efetivo, o projeto, da forma como está, arrisca consolidar a prática de remunerações muito acima do limite constitucional de R$ 44 mil. Se a intenção era barrar a criatividade contábil que justifica benefícios como “indenizações” e “auxílios” para burlar o teto, as mudanças acabaram por criar brechas ainda maiores. É preciso, portanto, retomar o debate e fortalecer os dispositivos que assegurem uniformidade e transparência, sob pena de vermos a manutenção do cenário atual, em que as remunerações milionárias continuam a aparecer nos contracheques de determinadas categorias, em claro desrespeito ao teto constitucional.

Por Daniel Duque, gerente da Inteligência Técnica do CLP

COMPARTILHE ESSE ARTIGO

Notícias Relacionadas