Introdução
Muitas vezes, o debate sobre a renda dos mais pobres é reduzido a uma equação de desigualdade: bastaria redistribuir melhor para que os de baixo avancem. No entanto, ainda que a redução de desigualdades é necessária, o crescimento econômico sustentado é um determinante tão ou mais poderoso da renda dos mais vulneráveis.
O crescimento sustentável depende, sobretudo, da qualidade das instituições. Países que combinam estabilidade fiscal crível, regras simples, competição efetiva e políticas sociais eficientes, alcançado o aumento sustentável da economia. O diagnóstico apresentado mostra que o Brasil reduziu fortemente a pobreza nas últimas décadas, mas ficou para trás em crescimento por manter distorções que travam a produtividade e a inovação. A agenda proposta organiza as soluções em três eixos: sustentabilidade fiscal de longo prazo; competitividade e abertura; e eficiência do gasto social com foco em capital humano.
Para o Brasil, isso significa reduzir entraves e incentivos distorcidos que desalinham a alocação de recursos, além de aumentar a previsibilidade e a transparência regulatória para diminuir risco e custo de capital, promovendo um ambiente de negócios mais aberto e competitivo, integrando comércio e investimento estrangeiro. Com isso, se reforça a eficiência do Estado em vez de seu tamanho, direcionando recursos ao que gera maior retorno social (educação, saúde, saneamento e transferências bem focalizados). Tais medidas gerarão um ciclo virtuoso que beneficiará os mais pobres com mais efetividade do que apenas redução da desigualdade.
Pobreza, crescimento e desigualdade
O Brasil reduziu a pobreza de forma expressiva nas últimas três décadas. Os dados mostram que a pobreza extrema caiu de níveis próximos a 30% no início dos anos 1990 para algo abaixo de 5% recentemente, enquanto a pobreza intermediária saiu da casa dos 40% para um dígito. Essa trajetória não é linear, mas o sentido é inequívoco: muito menos brasileiros vivem hoje em privação severa do que há 30 anos.
Taxa de Pobreza no Brasil entre 1992 e 2023

Fonte: Elaboração própria com dados do Banco Mundial
Três motores explicam esse avanço. Primeiro, a estabilização econômica que domou a inflação e deu previsibilidade à renda das famílias. Segundo a expansão das transferências de renda (BPC, Bolsa Família e sucessores), que elevou o piso de proteção social. Terceiro, a redução da desigualdade no mercado de trabalho, com ganho salarial relativo dos estratos médios-baixos, impulsionados por mais escolaridade, formalização e valorização do salário-mínimo O perfil de crescimento da renda por quintis confirma essa compressão distributiva: os percentis do meio e da base cresceram significativamente mais do que o topo, sinalizando uma redução considerável da desigualdade.
Crescimento da Renda por Quintil entre 1995 e 2022

Esses resultados, porém, tiveram um preço fiscal. Todos esses esforços fizeram com que a carga tributária tenha aumentado cerca de 10 pontos do PIB, de cerca de 24% em 1992 para 34% em 2024. Esse aumento foi usado para financiar tanto a rede de proteção (transferências, pisos constitucionais) quanto a ampliação de políticas públicas. O esforço veio de múltiplos níveis de governo, com maior peso federal, e consolidou uma capacidade de financiamento incomum para um país de renda média.
Carga Tributária Brasileira entre 1992 e 2024

O nível de arrecadação brasileiro hoje se aproxima ao dos países desenvolvidos e fica bem acima do padrão de economias emergentes e da própria América Latina. Esse descolamento impõe custos de eficiência: pressiona o investimento, onera a produção e reduz a competitividade justamente frente a países que competem conosco por capital e mercados. Em termos simples, construímos um Estado com receitas de país rico sem ter alcançado a mesma dinâmica de produtividade e crescimento.
Receitas do Governo em 2024 (% do PIB)

Nota: A receita é estimada de acordo com metodologia própria do FMI, composta por impostos, contribuições sociais, subvenções a receber e outras receitas. A receita aumenta o patrimônio líquido do governo, que é a diferença entre seus ativos e passivos (GFSM 2001, parágrafo 4.20)
A consequência aparece no crescimento econômico de longo prazo. Entre 1995 e 2022, enquanto o Brasil avançou menos de 1,2% ao ano no seu PIB per capita, o mundo cresceu mais de 2% e os países de renda média-alta, nossos pares, 4% (mesmo os desenvolvidos ficaram acima, em 1,6%). Partimos acima da média mundial e dos médios-altos e hoje estamos abaixo de ambos. Em outras palavras, ganhamos muito em redução da pobreza e desigualdade, mas perdemos posições de renda, e isso também cobra um preço dos mais pobres, porque menos crescimento significa menos emprego de qualidade e mobilidade.
Vale notar que os esforços para reduzir a desigualdade no Brasil são meritórios. Ainda hoje, seguimos um país com disparidades elevadas de renda e de riqueza. Pelo índice de Gini, que vai de 0 (total igualdade) a 1 (máxima desigualdade), o Brasil está em 0,48, acima tanto da média dos países desenvolvidos (0,375) quanto da média mundial (0,434) e dos países de renda média-alta (0,448). Em suma: melhoramos, mas continuamos mais desiguais que o “padrão” internacional.
Índice de Gini em 2022
| Gini | |
| Brasil | 0.48 |
| Países Desenvolvidos | 0.37 |
| Países de Renda Média-Alta | 0.45 |
| Média Mundial | 0.43 |
Fonte: Elaboração própria com dados do World Income Inequality Database (WIID)
Isso não significa abandonar a pauta redistributiva, mas ajuda a definir onde nossas políticas devem concentrar esforço marginal daqui para frente. Para ilustrar, são feitas quatro simulações simples que comparam níveis atuais de renda por quintis sob dois blocos de cenários. No cenário realista, é simulado: (i) como estaria a renda se tivéssemos crescido à mesma taxa do mundo entre 1995 e 2022; e (ii) como seria se mantivéssemos o PIB atual, mas adotássemos a distribuição por quintis típica de países de renda média-alta. No cenário otimista, o exercício é repetido com as seguintes simulações: (i) crescimento médio de países emergentes; e (ii) distribuição dos países desenvolvidos. Os resultados são mostrados na tabela abaixo.
Simulações de renda em 2022 por quintil, de acordo com cenário realista e otimista
| 20% mais pobres | 20-40% | 40-60% | 60-80% | 20% mais ricos | |
| Renda Observada | 275 | 614 | 976 | 1454 | 3738 |
| Crescimento na média mundial | 355 | 793 | 1260 | 1877 | 4827 |
| Distribuição de países de renda média-alta | 298 | 657 | 1007 | 1594 | 3501 |
| Crescimento na média de países emergentes | 607 | 1354 | 2153 | 3207 | 8245 |
| Distribuição de países desenvolvidos | 436 | 803 | 1129 | 1572 | 3117 |
Fonte: Elaboração própria com dados do World Income Inequality Database (WIID). Nota: valores em reais mensais, a nível de preços de 2024
Os números mostram clara vantagem para o crescimento econômico para aumentar a renda dos mais pobres. Se apenas tivéssemos crescido como o mundo, a renda do quintil mais pobre subiria de R$ 275 mensais para R$ 355, um ganho de 29% mesmo sem mexer na distribuição. Por outro lado, caso tivéssemos a distribuição de países de renda média-alta, o avanço para os mais pobres seria bem menor, passando para R$ 298 mensais.
No bloco otimista, o contraste fica ainda mais forte. Se o Brasil tivesse crescido na média dos emergentes, a renda do 20% mais pobre mais que dobraria (de R$ 275 para R$ 607), superando, com folga, qualquer alternativa baseada apenas em rearranjar fatias de rendimentos, mesmo se adotássemos só a distribuição típica dos desenvolvidos. Nessa última simulação, há ganho expressivo para a base, mas significativamente menor do que o efeito de crescer como os emergentes. Esse é o ponto central: crescimento sustentado é, de longe, a variável que mais eleva o piso material dos mais vulneráveis.
Simulação da renda dos 20% mais pobres em relação ao observado em 2022

Vale notar, a redistribuição pura tende a reduzir a renda do topo sem necessariamente dinamizar o meio, ao passo que crescimento amplia oportunidades, ocupação e produtividade ao longo de toda a distribuição. O desafio é, portanto, manter (e melhorar) a proteção social com uma estratégia de crescimento que reequilibre a carga, simplifique o sistema e aumente a produtividade para que a próxima queda da pobreza venha acompanhada de maior prosperidade.
A implicação de política é combinar frentes: preservar e aprimorar a progressividade das políticas, mas, ao mesmo tempo, virar a chave do crescimento. Para acelerar a economia, é preciso uma estratégia coerente e simultânea em três eixos: (1) sustentabilidade fiscal de longo prazo, para reduzir risco, juros e liberar espaço a investimentos; (2) competitividade e abertura, para destravar produtividade via comércio, investimento externo, concorrência e um ambiente regulatório simples; e (3) eficiência das políticas sociais, elevando capital humano e saneando os gastos que mais impactam bem-estar e produtividade. Países que combinaram disciplina fiscal com pressão competitiva e políticas sociais eficazes sustentaram ganhos de renda por décadas.
Eixo 1: Sustentabilidade fiscal
O primeiro eixo é a base da estratégia de crescimento. Ela deve se ancorar em uma trajetória crível de queda da dívida/PIB. Isso deve passar, obrigatoriamente, por uma revisão dos gastos obrigatórios (previdência social, salários e benefícios, programas sociais constitucionais, etc.). Adicionalmente, é necessário realizar programas de spending review e reavaliação de gastos tributários. Finalmente, privatizações e vendas de ativos reduzem o estoque da dívida e a conta de juros, melhorando o diferencial juros-crescimento e o rating soberano, o que, por sua vez, barateia o capital para o setor privado.
Do lado da receita, o objetivo é estabilidade sem aumento da carga total: consolidar a simplificação tributária já aprovada no consumo, ampliar bases e reduzir distorções pró-produtividade (por exemplo, desonerar contratações e investimento, compensando com corte de renúncias ineficientes). Um arranjo federativo mais previsível, com menos vinculações e maior simplificação, eleva a qualidade do gasto e cria margem fiscal para infraestrutura e capital humano.
Eixo 2: Competitividade
No plano microeconômico, o objetivo é nivelar o campo de jogo: reduzir barreiras de entrada, simplificar licenças, abrir mercados ao comércio e ao IDE, e reforçar regras pró-concorrência. Aumentar a exposição ao mercado externo é central para difusão tecnológica e disciplina de custos. Um cronograma plurianual de redução tarifária, trade facilitation e conclusão de acordos (ex.: Mercosul-UE) amplia escala de mercado e previsibilidade. Isso precisa vir acompanhado de política de convergência regulatória e serviços de apoio à exportação para PMEs, reduzindo custo fixo de entrar em novos mercados.
O OECD FDI Regulatory Restrictiveness Index (2024) mostra o Brasil mais restritivo ao investimento direto estrangeiro (IDE) que a média da OCDE. Há espaço para alinhar-se às melhores práticas, especialmente a simplificação do screening e fortalecimento da proteção jurídica (contratos, solução de controvérsias, land e licensing). Mais IDE traz tecnologia, gestão e competição.
Concorrência efetiva exige barreiras de entrada baixas. Desse modo, avaliações de impacto regulatório são necessárias, junto a um processo de digitalização radical. Infraestrutura e energia competitivas via concessões/PPPs estáveis podem reduzir o custo Brasil.
Reforçar CADE e reguladores setoriais (estudos de mercado, leniência, advocacy regulatória) combate cartéis e práticas de exclusão. Compras públicas pró-entrada e sandboxes regulatórios fomentam inovação e difusão tecnológica. Políticas industriais devem ser horizontais e disciplinadas, com apoio competitivo e temporário a missões claras (transição energética, digitalização), junto a metas verificáveis e porta de saída.
Eixo 3: Agenda social
Crescimento sustentado exige que o gasto social produza mais aprendizado e saúde. Nesse eixo, a prioridade absoluta deve ser para alfabetização na idade certa, ensino técnico e profissional articulado às cadeias produtivas, metas de qualidade com responsabilização e formação docente baseada em evidência. Avaliações transparentes, tempo integral focalizado e matching com empresas elevam empregabilidade juvenil e encurtam a transição escola-trabalho, reduzindo informalidade e rotatividade.
Expandir saneamento e atenção primária resolutiva gera ganhos diretos de produtividade (menos doenças, mais presença escolar). Transferências focalizadas devem manter proteção a choques, mas com avaliação contínua de custo-efetividade. Ao direcionar cada real ao que mais eleva capitais humano e social, o gasto social passa a ser um acelerador do crescimento, e não apenas um amortecedor.
Por Daniel Duque, gerente da Inteligência Técnica do CLP


