Do diagnóstico à ação: O que o Brasil pode aprender com o ‘Relatório Draghi’

Do diagnóstico à ação: O que o Brasil pode aprender com o ‘Relatório Draghi’

O aumento da produtividade e a garantia de competitividade internacional têm sido fatores essenciais para manter os padrões de vida dos países, conforme apresentado no documento “The future of European competitiveness”, também chamado de ‘Relatório Draghi’. Nele, são descritos obstáculos como a baixa inovação, marcada pela ausência de grandes empresas de tecnologia surgidas do zero nos últimos 50 anos, e pela defasagem nos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Soma-se a isso a excessiva fragmentação do Mercado Único, que dificulta ganhos de escala e o acesso a mercados, além de elevar barreiras burocráticas para pequenas e médias empresas. Além disso, a transição energética enfrenta custos elevados de adaptação, enquanto a União Europeia se vê cada vez mais dependente de insumos críticos vindos de países concorrentes.

Para enfrentar tais desafios, o documento propõe um conjunto de ações coordenadas: superar a lacuna de inovação por meio de maior integração dos mercados de capitais e estímulo a “scale-ups”, adotar um plano integrado de competitividade e descarbonização, com revisão das estruturas de custo e incentivos para tecnologias limpas, e fortalecer a segurança econômica, reduzindo as vulnerabilidades externas. A União Europeia busca, assim, alinhar políticas industriais, fiscais e comerciais em torno de uma governança mais eficaz e menos burocrática, ampliando o papel do setor público em investimentos estratégicos e incentivando a evolução tecnológica. O objetivo final é garantir a competitividade sistêmica, equilibrando sustentabilidade, coesão social e independência estratégica em um cenário global mais incerto do que no passado.

Em suma, o diagnóstico apresentado no documento europeu aponta a estagnação da competitividade europeia, devido a problemas como a redução do ímpeto inovador, a fragmentação de mercados e altas cargas regulatórias. No caso do Brasil, apesar de existir uma das maiores economias do mundo, a produtividade também cresce em ritmo abaixo do ideal, pressionando a competitividade e a capacidade de aumentar renda e qualidade de vida da população. A exemplo do que ocorre na Europa, o país enfrenta uma combinação de mão de obra relativamente cara em comparação a economias de mesmo nível de desenvolvimento e um arcabouço regulatório complexo, que desestimula a criação e expansão de empresas de base tecnológica.

Em termos de regulação e burocracia, o Brasil ainda apresenta barreiras para a formação de um mercado unificado de fato, sobretudo pela disparidade de normas estaduais e municipais, além de uma legislação tributária que gera custos adicionais para as empresas. Nesse aspecto, a reforma tributária em discussão surge como mecanismo crucial para impulsionar a competitividade, reduzindo a cumulatividade de impostos e unificando regras que hoje variam muito entre os diferentes entes federados. Seguindo a lógica do Mercado Único europeu, um ambiente tributário mais harmonizado e menos burocrático facilitaria a circulação de bens, serviços e capital entre as regiões brasileiras, elevando ganhos de escala e incentivando investimentos.

No front internacional, a estratégia brasileira de competitividade deve incluir maior integração comercial tanto no âmbito do Mercosul quanto em acordos bilaterais e blocos como a União Europeia. Assim como o documento europeu ressalta a importância de lidar simultaneamente com as necessidades de segurança econômica e abertura comercial, o Brasil precisa buscar acordos mais amplos, que envolvam não apenas redução tarifária, mas também convergência regulatória e cooperação em pesquisa e inovação. Nesse sentido, destravar o Acordo Mercosul-União Europeia pode oferecer oportunidades de acessar mercados estratégicos, acelerar a adoção de padrões globais e elevar a exigência de conformidade técnica, estimulando o setor produtivo nacional a investir em qualidade e competitividade.

Outro ponto essencial é a disponibilidade de energia a custos competitivos e com menor volatilidade. No Brasil, embora a geração elétrica seja majoritariamente renovável (hidrelétrica, eólica e solar), o sistema de distribuição encarece a conta final, e a carga tributária sobre energia penaliza a indústria. Tal qual se discute na Europa, seria importante fomentar um mercado de energia mais eficiente e transparente, revisando encargos setoriais e integrando sistemas de transmissão para baratear custos. Ademais, o Brasil poderia aproveitar seu potencial de geração limpa para atrair indústrias de baixo carbono, servindo como plataforma de exportação sustentável e mitigando riscos de competitividade no comércio internacional.

Na área de inovação, o documento europeu chama a atenção para a necessidade de aumentar o financiamento à pesquisa e desenvolvimento (P&D), sobretudo via capital privado. No Brasil, tradicionalmente, a maior fatia de recursos de P&D provém de agências e fundos públicos, e a participação privada permanece aquém do desejado. Políticas de incentivo fiscal e ambientes de venture capital mais robustos são instrumentos essenciais para estimular empresas a apostar em projetos de inovação, criando “scale-ups” com potencial de competir internacionalmente. Estabelecer parcerias público-privadas, investir em infraestrutura de pesquisa e ampliar o suporte a startups em estágios iniciais poderiam destravar o ecossistema de inovação.

Por outro lado, a exemplo das discussões europeias sobre a importância de educação e qualificação profissional, o Brasil precisa avançar nas políticas que ampliem a oferta de mão de obra capacitada, principalmente em áreas tecnológicas e de engenharia. Aqui, a inclusão digital e a qualidade da formação básica são desafios estruturais que, se não forem sanados, limitam o salto de produtividade nacional. Programas de requalificação e treinamento contínuo, além de currículos mais alinhados às demandas do mercado de trabalho, se tornam centrais para absorver as mudanças tecnológicas sem produzir desigualdades ainda maiores.

Por fim, assim como a UE, o Brasil possui uma rede de proteção social relativamente desenvolvida, que ajuda a mitigar a pobreza e a desigualdade. O desafio consiste em harmonizar essa rede com reformas que gerem maior dinamismo econômico e eficiência do gasto público. Ao equilibrar políticas de assistência social com incentivos à produção, pesquisa e inovação, o país pode almejar um modelo de crescimento inclusivo, em que competitividade e bem-estar social se reforcem mutuamente.

A experiência europeia destaca a importância de combinar medidas de fortalecimento do mercado interno, maior abertura comercial e políticas estruturantes de inovação para elevar a produtividade. O Brasil, ao adaptar essas recomendações à sua realidade, ganha pistas valiosas de como construir um futuro de crescimento sustentável, competitivo e inclusivo. Dois pontos semelhantes ao diagnóstico do ‘relatório Draghi’ serão investigados com mais profundidade: a integração econômica regional e a questão energética.

Integração Econômica-Comercial

Em um contexto mundial de incertezas geopolíticas e disputas comerciais, medidas de integração comercial tornam-se cada vez mais relevantes. Um dos exemplos importantes nesse sentido é o Acordo União Europeia–Mercosul. Ao reduzir barreiras tarifárias e não-tarifárias, o tratado promete ampliar o acesso a bens de consumo de primeira necessidade, como alimentos, e a insumos tecnológicos, beneficiando tanto empresas quanto consumidores de ambas as regiões. Com a diminuição de riscos e custos de transação, as cadeias produtivas internacionais tendem a se tornar mais eficientes, refletindo em maior competitividade e investimentos.

Esse possível avanço, porém, não pode ofuscar a necessidade de o Brasil fortalecer o próprio Mercosul. O bloco, formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, enfrenta desafios na coordenação de políticas comerciais e, em alguns casos, na harmonização regulatória. Uma zona de livre comércio interna mais robusta, com regras claras para a circulação de pessoas, capitais e produtos, resultaria em um mercado regional integrado, apto a negociar em melhores condições com outros parceiros mundiais, como a União Europeia.

Dentro desse cenário, a estabilização macroeconômica e política dos países-membros, em especial a Argentina recentemente, pode contribuir para a consolidação desse bloco. Um ambiente regional mais previsível e coeso aumenta a confiança dos investidores e favorece a implementação de acordos comerciais de grande porte. A experiência histórica mostra que incertezas em um dos integrantes podem comprometer não apenas o fluxo de bens e serviços, mas também a efetividade de tratados internacionais.

Além disso, a abertura para a livre circulação de bens e pessoas no âmbito do Mercosul traz oportunidades adicionais de sinergia econômica. Cadeias de produção podem se articular de forma mais integrada entre os países, aproveitando vantagens comparativas de cada economia e potencializando o comércio intrabloco. Essa dinâmica fortalece a base produtiva regional, gerando empregos e estimulando a inovação, aspectos fundamentais para enfrentar uma concorrência global cada vez mais acirrada.

Em última instância, o Acordo União Europeia–Mercosul deve ser visto como parte de um processo mais amplo de integração e modernização econômica sul-americana. Se bem articulado, o tratado pode oferecer não apenas um mercado maior para exportações de alimentos e recursos naturais, mas também abrir novos espaços para a indústria e para o setor de serviços do Brasil e de seus vizinhos. Ao mesmo tempo, ao buscar um Mercosul mais coeso, o país pavimenta o caminho para um crescimento econômico de longo prazo, fundamentado em estabilidade política, convergência regulatória e maior inserção competitiva nas cadeias globais de valor.

Custos Tarifários de Energia Elétrica

O custo brasileiro elevado da energia elétrica, mesmo com uma matriz predominantemente limpa e diversificada, ilustra um paradoxo que afeta diretamente a competitividade do país. Em princípio, o Brasil desfruta de vantagens significativas para a geração de energia: abundância de recursos hídricos, expansão rápida das fontes eólica e solar e a tradição do etanol de cana. Com esse perfil, seria de se esperar que os preços repassados a indústrias e consumidores fossem mais baixos. Contudo, estudos e dados de entidades como a Abrace Energia e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) mostram que, apesar de a geração ser relativamente barata, o custo final ao consumidor brasileiro se mantém elevado, criando um gargalo para o crescimento econômico e a competitividade internacional do setor produtivo.

O Gráfico abaixo ilustra o custo de comprar 1000 kWh de energia elétrica em cada país em comparação com 1000 dólares anuais de PIB per capita. No caso do Brasil, esse custo proporcional é de 18,9, seguido da República Tcheca, com 13,5. Na Itália e Espanha, que ocupam a quarta e sexta posição, respectivamente, esse custo é de 11,9 e 11,2, respectivamente

Fonte: Elaboração própria com dados do Abrace Energia

Entre as principais causas do encarecimento estão questões regulatórias e políticas energéticas que oneram a distribuição e a transmissão. Encargos setoriais, subsídios cruzados e elevados impostos representam mais de 40% da conta de luz, segundo relatórios do setor. Inúmeros programas, alguns criados para apoiar fontes alternativas, outros para custear políticas públicas e subsídios específicos, acabam se sobrepondo na fatura de energia elétrica, sem passar por escrutínio aprofundado no Orçamento Geral da União. A consequência é que o consumidor paga por “jabutis” energéticos, isto é, dispositivos legais e encargos incluídos em legislações como a da privatização da Eletrobras, que muitas vezes estão desconectados do objetivo de promover eficiência ou baratear a conta de luz.

A estes entraves somam-se as perdas não técnicas, majoritariamente decorrentes de furtos de energia (os populares “gatos”). Dados recentes indicam que essas perdas não técnicas chegam a representar cerca de 6,7% da energia injetada no sistema, volume similar ao consumo residencial de uma região inteira do país. O custo dessas irregularidades, quando reconhecido pela agência reguladora, acaba embutido na tarifa oficial, penalizando os consumidores adimplentes e minando a competitividade do setor produtivo. Tal problemática remete às análises do relatório europeu sobre competitividade, que destaca como ineficiências e fragmentações regulatórias podem comprometer o desenvolvimento econômico.

Outro ponto crítico é a complexidade tributária, que eleva os preços da energia ao incidir não apenas sobre o consumo básico, mas também sobre a parcela referente aos próprios subsídios e encargos. Esse efeito “cascata” alimenta um círculo vicioso: tarifas altas reduzem a competitividade industrial e refletem-se, por exemplo, no preço final de bens e serviços. Em muitos casos, a energia se torna um insumo proibitivo para pequenas empresas e consumidores de baixa renda, comprimindo ainda mais a renda disponível e prejudicando a capacidade de expansão dos negócios. É um problema de lógica semelhante ao apontado no relatório sobre a União Europeia, no qual a energia cara limita a margem de investimento em tecnologias de ponta e inovação.

Para enfrentar esse contexto, discute-se no Brasil a modernização do setor elétrico por meio de projetos de lei como o PL nº 414/2021, que prevê a abertura gradual do mercado livre de energia e aperfeiçoamentos nos mecanismos de formação de preços e alocação de riscos. Além disso, urge uma revisão dos subsídios setoriais, eliminando os que perderam eficácia ou cujos benefícios não se justificam mais. A diminuição de encargos e o combate efetivo ao roubo de energia também são medidas cruciais para que o país possa aproveitar ao máximo sua vantagem estrutural na geração limpa e abundantemente disponível.

Uma agenda de reformas nessa direção permitiria ao Brasil criar um ambiente mais propício para atrair investimentos, ao mesmo tempo em que reduziria os custos de produção para a indústria. A experiência europeia reforça que uma estratégia consistente de competitividade passa por integrar políticas energéticas, de inovação e de regulação de modo sistêmico. Ainda que o contexto nacional difira do europeu, o caminho para alavancar o crescimento econômico exige melhorias na eficiência da distribuição elétrica, redução de entraves tarifários e ataques frontais aos gargalos regulatórios que penalizam o consumidor final.

Desse modo, o Brasil pode retomar sua histórica vocação de energia acessível e limpa como uma de suas vantagens comparativas. À medida que a indústria reduz o peso da conta de luz em seus custos e as famílias veem a renda ser menos consumida pela energia, abrem-se oportunidades para inovar, exportar e gerar empregos de maior valor agregado. É, portanto, uma agenda prioritária para a competitividade e um passo fundamental no sentido de alinhar o desenvolvimento econômico à sustentabilidade, favorecendo um ciclo virtuoso de crescimento.

Por Daniel Duque, gerente da Inteligência Técnica do CLP

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