A pergunta que não quer calar: como será o pós-pandemia? Bom, para as compras públicas já sabemos. Mais ágeis, com certeza. Eis o legado da Covid-19. A exemplo do que ocorreu com Regime Diferenciado de Contratação – RDC, mais uma vez a pressa foi amiga da inovação no que diz respeito às compras públicas. Superamos as tradicionais raízes burocráticas licitatórias para agir com rapidez e eficiência. Entenda:
A finalidade da compra pública versus o procedimento da compra
A finalidade da compra pública é a de suprir o erário. Parece óbvio. E, na elaboração da Lei Federal nº 13.979/2020, este foi o norte do legislador. Essa norma trata de compras públicas para atendimento de necessidades da Covid-19, sendo de aplicação nacional.
Realça-se isso, pois a legislação vigente vem sendo cada vez mais refém da falta de confiança que assola as intuições. E, por vezes, preocupa-se e ocupa-se mais em resguardar o “devido processo legal da compra” do que com sua finalidade precípua.
As mudanças nas compras públicas
Assim como a Lei 13.979/2020, as medidas provisórias que a sobrevieram continuaram compondo uma legislação disruptiva, desburocratizando os procedimentos, dando ao Poder Público mecanismos de concorrência frente ao comprador privado; veja-se o instituto do pagamento antecipado aos fornecedores. Mais que isso, a nova lei veio trazer respaldo legal ao gestor, colocar nas linhas questões que outrora habitavam as estrelinhas, como a formação do preço e sua aceitabilidade, agilizando a tomada de decisão do gestor, que agora consulta apenas lei ao invés de inúmeras interpretações de boas práticas para formação do seu entendimento.
Fato é que a pandemia está dando uma curva no Projeto de Lei nº 1292 que tramita Congresso Nacional desde 1995 para reformar a Lei 8.666/93. A Lei nº 13.979/2020 deu o primeiro passo, relativizando prazos, documentos de habilitação e até mesmo sanções, quando forem essas as únicas condições para se obter o bem jurídico tutelado: o fornecimento do bem.
O passado recente das compras públicas
Todavia não é primeira vez que isso acontece. Foi assim com o RDC. Porém, a urgência não era a de uma pandemia, mas a de uma Copa do Mundo. Situações incomparáveis, claro. Mas que também não poderiam ser resolvidas em tempo hábil com as legislações de compras públicas existentes. O que fez o legislador então? Criou o RDC. Relativizou uma série de questões da Lei 8.666/93, prezou pela celeridade e pela desburocratização do procedimento.
Na época isso já revolucionou conceitos. A Comissão de Licitações recebeu discricionariedade bem maior no uso da diligência. O Estado desvencilhou-se de um processo longo e oneroso. Rompeu-se com a gincana brega do envelope perfeito, numerado e rubricado de acordo com as alíneas do edital. Resultado: em pouco tempo, diante da sua eficiência, alterações legais estenderam o RDC às obras do PAC, do SUS, dos estabelecimentos prisionais.
A história se repete
O mesmo ocorre com a lei da Covid-19. Ela inova trazendo registro de preços na dispensa de licitação, aquisição de bens usados, reduz prazos e retira o efeito suspensivo dos recursos. O movimento de inovação é tanto, que mexe nas compras públicas como um todo, abrindo caminho para a Medida Provisória – MP 961, o pulo do gato.
O RDC surge novamente! Agora na MP e podendo ser utilizado para todas as compras e contratações. Isso resolve muita coisa! A começar por um procedimento mais flexível e eletrônico e para obras, que em época de coronavírus é essencial em substituição às sessões públicas de concorrência, tomada de preços ou convite, as quais não têm procedimento eletrônico regulamentado.
Um fato implícito
Importante destacar que tanto a Lei da Covid quanto a Lei do RDC nascem como medidas excepcionais, para causas específicas, tendo a celeridade como premissa. Ambas foram criadas por em governos extremamente distintos, mas concordaram sobre o mesmo ponto: a legislação vigente é, no mínimo, ineficiente quando o assunto é celeridade.
A revolução das compras públicas
E assim, de uma forma inesperada e urgente, estamos vendo o sistema de exceção tornar-se o necessário “novo normal”. O regramento de compras públicas para a pandemia visitou e sanou questões polêmicas. Abriu caminho para outras soluções há 25 anos represadas num projeto emendado e remendado, atravancando a revolução nesse campo tão importante e tão estratégico – visto, equivocadamente, somente como área de meio. Registre-se: compras públicas salvam vidas, executam políticas públicas, têm potencial de regular mercados e fomentar segmentos de empreendedorismo.
Não é esse um pedido de arquivamento do PL nº 1.292/95. Muito pelo contrário, é um pedido de pauta. Mas que se for para ser tratado com a mesmo descaso, é preferível deixar a cargo das medidas provisórias.
O risco de retrocesso
Vemos medidas em prol da desburocratização e da agilidade da administração nas compras públicas. Vemos também o mau uso desse poder em Estados e Municípios. O país assiste outra onda de corrupção envolvendo mau uso do dinheiro público, o “Covidão”. Contratos milionários de compra de respiradores superfaturados, contratação irregular e desvio de verbas na montagem de hospitais de campanha, empresas de fachada em nome laranjas, entre outros.
Registre-se, por oportuno, que a estrutura para identificar irregularidades, banir e desarticular esses crimes já existe: Controle Interno, Externo, Ministério Público, Polícia, Poder Judiciário. Instituições estruturadas e competentes para tal. Mas, sim, a nova lei tem um potencial destrutivo muito maior em mãos erradas. Mas esse é o problema! As mãos erradas e não a lei.
Contudo, a falta de confiança generaliza que tomou conta do Brasil pode fazer com que mexamos na lei, que tornemos os processos mais rígidos. Escudos legais. Têm sentido? Sim. Mas dessa forma resguardamos o quê? A armadura pesa. E acaba por prejudicar aquilo que é o mais importante (o respirador comprado, o hospital construído, os serviços contratados): a finalidade da compra pública para a sociedade.
Que não sejam, pois, as ações dos maus gestores a balizarem as inovações nas compras públicas nem em qualquer outra área. Eles são a minoria. Que nós não nos assustemos com a lei por conta das notícias. Assim, por mais piegas ou clichê que soe, que elas sirvam para guardarmos os nomes, em caso de condenação transitada em julgado, evidente, e lembrarmos em época de eleição.
Kethy Helen de Souza Bazo é formada em Direito pela PUC-RS e pós-graduada em Direito Administrativo. Advogada e Servidora Pública do Estado do Rio Grande do Sul, pertence ao quadro dos Analistas de Projetos Políticas Públicas. Cursaa Turma 6 do Master em Liderança e Gestão Pública – MLG. É apaixonada pela área de compras públicas, onde atua há 10 anos. Atualmente dirige o Projeto de Modernização dos Sistemas de Compras do RS, na Subsecretaria Central de Licitações – CELIC/SEPLAG-RS. É cofundadora da Rede Mulheres Públicas.