Sobre o reajuste salarial dos servidores federais
O Governo anunciou recentemente a previsão de um aumento salarial de 9% aplicado de forma generalizada a todos os servidores públicos federais. Essa medida representará um impacto orçamentário significativo, estimado em cerca de R$ 10 bilhões anuais apenas considerando os servidores ativos. A proposta surge em resposta às demandas dos servidores, que destacam um longo período sem reajustes, agravado pelo cenário de inflação elevada, o que resultou em perda expressiva do poder de compra dos salários.
De fato, dados da RAIS de 2019, 2021 e 2023 evidenciam claramente a redução salarial sofrida pelos servidores públicos federais ao longo dos últimos anos. Nesse período, a remuneração média caiu de aproximadamente R$ 15 mil em dezembro de 2019 para R$ 12 mil no mesmo mês em 2023. Por outro lado, trabalhadores celetistas do setor privado mantiveram maior estabilidade salarial, com uma ligeira elevação de R$ 3 mil para R$ 3,1 mil nesse mesmo período, ressaltando que o cenário negativo se concentrou majoritariamente na carreira pública.
Média Salarial dos Empregados em dezembro (R$ mensais, a preços de dezembro de 2023)

Contudo, essa queda salarial observada nas médias precisa ser analisada com cautela, pois disfarça heterogeneidades relevantes e alterações significativas na composição dos servidores federais. Entre dezembro de 2019 e 2021, o número total de servidores civis federais caiu de pouco menos de 650 mil para aproximadamente 539 mil. Já no período subsequente, houve uma expansão acelerada, atingindo 738 mil servidores em dezembro de 2023. Este aumento significativo de novos ingressantes, geralmente posicionados em níveis iniciais e, portanto, com remunerações mais baixas, explica parte da redução observada na remuneração média.
A diferença salarial média entre servidores públicos federais e trabalhadores celetistas do setor privado diminuiu significativamente nesses últimos anos, passando de 407% em dezembro de 2019 para 278% em dezembro de 2023. Essa redução pode ser explicada por dois fatores distintos: por um lado, o prêmio salarial dentro das carreiras, que reflete a diferença salarial média para o mesmo tipo de ocupação nos dois setores; por outro lado, o efeito composição, que decorre das mudanças no peso relativo de carreiras com diferentes médias salariais dentro da estrutura de pessoal do serviço público.
É importante salientar que o conceito de prêmio salarial não reflete necessariamente uma relação causal, dado que podem existir diferenças estruturais importantes entre trabalhadores dos setores público e privado, como níveis mais elevados de escolaridade ou experiência no setor público federal. Ainda assim, ele fornece uma referência útil sobre quanto se remunera diferentemente trabalhadores em ocupações comparáveis nos dois setores, permitindo identificar se a redução observada decorreu principalmente de uma perda relativa de remuneração nas carreiras públicas ou de mudanças na composição das carreiras predominantes.
De fato, ao realizar uma decomposição dessa redução salarial total, constata-se que o principal fator responsável foi o componente de prêmio salarial. Entre 2019 e 2023, o prêmio salarial caiu consideravelmente, de 293% para 194%, uma queda de quase 100 pontos percentuais tomando como base o salário médio dos celetistas em dezembro de 2019. Esse resultado sugere que houve uma redução expressiva na remuneração relativa dentro das carreiras públicas federais comparadas às privadas, indicando que, em geral, servidores públicos passaram a receber salários relativamente menores que antes, em ocupações semelhantes às do setor privado.
Decomposição da Diferença Salarial do Setor Privado e Público Federal por Prêmio Salarial e Composição das Ocupações

Já o efeito composição, embora também tenha contribuído para a redução da diferença salarial total, teve um impacto mais modesto. A decomposição indica que esse efeito passou de 114% para 84% no mesmo período, o que representa uma queda de apenas 30 pontos percentuais. Isso sugere que, apesar do aumento na contratação de servidores em carreiras com médias salariais relativamente menores nos últimos anos, essa mudança na composição não explica a maior parte da redução observada na diferença salarial total entre o setor público federal e o privado.
Vale notar que, embora a média salarial tenha caído, algumas carreiras específicas tiveram trajetórias distintas, com aumentos significativos de remuneração. Um exemplo são os cargos gerenciais, que registraram valorização salarial expressiva mesmo diante do cenário geral de retração dos rendimentos. Essa disparidade destaca ainda mais a importância de uma análise detalhada por carreiras, demonstrando que o impacto da inflação e da ausência de reajustes salariais não atingiu todas as categorias de forma uniforme.
Variação Salarial e Contribuição para o Aumento de Servidores Federais

Assim, embora o reajuste proposto pelo Governo venha em um momento necessário, a distribuição uniforme de um aumento percentual não necessariamente atende às desigualdades acumuladas nos últimos anos. Uma política salarial mais eficiente poderia considerar essas heterogeneidades, buscando corrigir desequilíbrios internos que se aprofundaram, especialmente diante da recente expansão da força de trabalho federal com predominância de servidores em início de carreira, cujos salários são, naturalmente, inferiores.
Em conclusão, o aumento das remunerações do setor público federal surge como resposta legítima às reivindicações dos servidores, especialmente diante do prolongado período sem reajustes, que resultou em perdas significativas no poder de compra. No entanto, essa reposição salarial não deveria ocorrer de maneira linear para todas as carreiras. Uma abordagem mais eficaz seria priorizar carreiras específicas que enfrentaram maiores perdas relativas nos últimos anos, garantindo uma recomposição salarial mais justa e eficiente.
Além disso, é fundamental controlar a expansão generalizada nas contratações de servidores, uma vez que isso tende a aumentar significativamente o impacto fiscal associado aos reajustes salariais futuros. Caso o número atual de servidores federais fosse o mesmo de 2019, o reajuste de 9% já seria pouco mais de R$ 1 bilhão mais barato. Portanto, políticas seletivas, que equilibrem aumentos salariais com controle rigoroso sobre novas admissões, seriam essenciais para promover a sustentabilidade fiscal e, ao mesmo tempo, valorizar adequadamente os servidores públicos que foram mais prejudicados pela inflação e pela falta de reajustes anteriores.
Por Daniel Duque, gerente da Inteligência Técnica do CLP