No ano passado, o Governo Federal editou o Decreto nº 10.530/2020, cujo conteúdo trouxe uma enorme discussão. O texto do decreto permitia a “elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Segundo críticos, isso abriria espaço para a privatização dos serviços de saúde no Brasil e seria o fim do Sistema Único de Saúde – SUS. Ademais, também questionaram o modo com que foi feito, pois entendiam que pelo conteúdo, deveria ter ocorrido uma ampla discussão, antes da edição da medida, e, por isso, no lugar de um decreto, o Governo poderia ter enviado um projeto de lei para análise do Congresso Nacional.
Entretanto, os apoiadores das medidas defenderam que os serviços públicos prestados por entes privados continuam sendo serviços públicos. Além disso, outro ponto seria que a abertura de serviços públicos à gestão privada traria uma maior eficiência no uso de recursos públicos, um maior investimento na área da saúde e uma melhor prestação dos serviços. Um dia depois da publicação, o decreto foi revogado pelo próprio Governo.
Nesse artigo, iremos entender o que significam arranjos na prestação de serviços públicos e porque eles não precisam ser prestados necessariamente pelo governo, mas podem sim também ser executados através de parcerias com o terceiro setor ou com o setor privado, sem deixar de serem serviços públicos.
O que são serviços públicos?
Segundo nossa Constituição, o Estado brasileiro é responsável por garantir uma série de direitos ao cidadão através de serviços públicos. Mas, o que são serviços públicos?
“Toda atividade que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça às vezes, de oferecimento, de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administradores, sob um regime de direito público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo”. (Celso Bandeira de Melo)
Conforme explicitado pelo autor, os serviços públicos são referentes às atividades de interesse público que visam atender às necessidades coletivas da população, as quais seriam, por exemplo, saúde e segurança pública. Além disso, não há a exclusividade da prestação de serviços públicos apenas por entes públicos, existem outras possibilidades. Essas possibilidades alternativas não alteram a natureza do serviço público, são apenas outros modelos de oferta para prestação dos serviços públicos.
A influência do New Public Management
Essa discussão não começou atualmente. No Brasil, os conceitos provenientes da chamada New Public Management foram introduzidos através Reforma Geral do Estado (1995), capitaneado pelo Ministro Bresser-Pereira. Um dos objetivos principais da reforma era a modernização do serviço público no país, especialmente:
- Aumentar a governança do Estado, ou seja, sua capacidade de governar com efetividade e eficiência, voltando a ação dos serviços do Estado para o atendimento dos cidadãos;
- Limitar a ação do Estado àquelas que lhes são próprias, reservando, em princípio, os serviços não-exclusivos para a propriedade pública não-estatal, e a produção de bens e serviços para o mercado, para a iniciativa privada.
Segundo Bresser Pereira “é um modelo estrutural porque não se limita a estratégias de gestão mas envolve mais do que mudanças organizacionais: implica mudanças na estrutura do Estado, porque envolve todo tipo de parcerias público-privadas, porque os serviços sociais e científicos que a sociedade exige que o Estado forneça são terceirizados para organizações não-estatais. É um modelo de gerência que é também um modelo de “governança” porque envolve outros atores, além do próprio governo, no processo de governar”.
“Nessa nova ordem de ideias, tem-se que o Estado não deve nem tem condições de monopolizar a prestação direta, executiva, dos serviços públicos e dos serviços de assistência social de interesse coletivo. Esses podem ser geridos ou executados por outros sujeitos, públicos ou privados, inclusive públicos não-estatais, como associações ou consórcios de usuários, fundações e organizações não-governamentais sem fins lucrativos, sempre sob a fiscalização e a supervisão imediata do Estado.” (MODESTO)
Ou seja, fica claro que a prestação de serviços públicos não precisa necessariamente ocorrer através de entes públicos. Por outro lado, também não precisa ocorrer exclusivamente através de contratação de entes privados. Cada caso deve ser analisado sob a ótica do que é mais favorável à população, levando em conta as condições do setor público.
Arranjos na prestação de serviços públicos
A forma mais comum de intervenção do governo em bens não públicos é pela própria unidade de produção, ou seja, o próprio governo administração a prestação de serviços, por exemplo, departamento de bombeiros.
Uma segunda forma, é através da contratação de outra unidade governamental, por exemplo, consórcios para depósito e tratamento de resíduos sólidos. O poder público pode também terceirizar o serviço por meio da contratação de uma empresa privada, por exemplo, contratar uma empresa para pavimentar uma rua.
Uma terceira forma é a especificação de padrões de serviços e deixar para cada consumidor selecionar um fornecedor particular e adquirir o serviço, por exemplo, serviços de táxi. Existe, por fim, a via da emissão de comprovantes às famílias, permitindo a elas adquirir serviços de qualquer fornecedor autorizado, por exemplo, vale-refeição.
Parcerias e arranjos na prestação de serviços públicos
Como vimos acima, há diversos arranjos para prestação de serviços públicos. Vamos, agora, entender como as parcerias podem ocorrer.
Lei de Licitações
Uma das formas mais conhecidas é a contratação de empresas via Lei de Licitações. Nesse processo, são selecionadas empresas aptas a executar determinados contratos administrativos, e dentre elas é escolhida a proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Um exemplo é a contratação de uma empresa para realizar reparos em vias públicas.
Entretanto, a Lei de Licitações é duramente criticada por ser um processo moroso e burocrático. Como forma de simplificar o processo e garantir agilidade em grandes obras, foi criado o Regime Diferenciado de Contratações, que inicialmente foi utilizado para obras e serviços da Copa e Olimpíadas, mas tem seu uso continuado, em especial nas empresas públicas, como a Petrobrás.
Existem formas de contratação de instituições do terceiro setor, que podem ser realizadas com Organizações Sociais (OS) ou organizações da sociedade civil (OSC).
Organizações Sociais (OS)
As OS’s são entidades privadas sem fins lucrativos, que recebem a qualificação do Poder Público para poder assumir atividades desempenhadas como serviços públicos, que podem incluir ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde. Essas entidades poderão receber recursos orçamentários e bens públicos. Além disso, podem contratar empregados e compras de bens e serviços de forma direta, sem concurso público ou processo licitatório. Para isso, são celebrados Contratos de Gestão, no qual consta a contraprestação pelo alcance da meta de desempenho, em geral, após a realização de um chamamento público. Um exemplo são os hospitais públicos gerenciados por OS’s, como o Hospital São Paulo.
Organizações da sociedade civil (OSC)
Já as OSC’s são entidades privadas sem fins lucrativos, ou seja, que desenvolvem ações de interesse público e não têm o lucro como objetivo, e englobam as associações e fundações, as cooperativas sociais e as que atuam em prol do interesse público e as organizações religiosas. Essas são reguladas através do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil -MROSC, que veio para aperfeiçoar o ambiente jurídico e institucional relacionado às organizações da sociedade civil e suas relações de parceria com o Estado. Um exemplo é a utilização pelo poder público de comunidades terapêuticas ligadas a credos evangélicos.
Concessões
Uma outra forma é a concessão, contrato entre a administração pública e uma empresa privada, pelo qual é transferida a execução de um serviço público. Isso, para que exerça este em seu próprio nome e por sua conta e risco, mediante tarifa paga pelo usuário, em regime de monopólio ou não, por exemplo, as rodovias com pedágio, como a Rodovia Presidente Dutra.
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Parcerias público-privadas (PPP’s)
Por fim, as parcerias público-privadas são, em suma, contratos firmados entre os setores público e privado, nos quais o setor privado, mediante pagamento, presta determinado serviço ao setor público. Elas podem ser administrativas ou patrocinadas. A PPP administrativa é aquela em que o pagamento ao setor privado, prestador do serviço, vem somente dos cofres públicos. Na PPP patrocinada, por outro lado, uma parte do pagamento vem dos recursos do governo e outra parcela é originária do bolso dos usuários do serviço. Um exemplo de PPP é o presídio de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais.
Por fim, vale ressaltar que privatizações são quando um bem público torna-se privado, a exemplo do que ocorreu com a mineradora Vale do Rio Doce, em 1997. Assim, privatizar é diferente das modalidades descritas, onde o bem continua sendo público, apenas a prestação de serviços é realizada por outros entes.
Podcast Coisa Pública: Como funcionam as PPP’s no saneamento básico?
Entre esses arranjos na prestação de serviços públicos, qual é o melhor?
Ao longo do artigo, apresentamos diversas formas de prestação dos serviços públicos. Cada uma delas possui pontos positivos e pontos negativos. Por isso, cada serviço público tem que ser analisado de acordo com suas especificidades pelo gestor público, o qual deve conhecer os arranjos possíveis e através de dados, decidir qual forma é a mais benéfica para a população naquele caso. Não existe uma forma melhor que a outra, mas sim um conjunto de possibilidades que deve ser levado em conta na hora da decisão.
Agora que conhecem mais sobre o assunto, qual a opinião de vocês sobre o Decreto nº 10.530/2020?