Desde janeiro, a Rede MLG de Apoio à Primeira Infância retomou, a todo vapor, seus encontros visando construir ações que apoiem e qualifiquem as políticas públicas destinadas às crianças e seus cuidadores, seja na gestão pública e na sociedade em geral. Dentre essas ações, uma delas foi a realização de um webinar sobre o tema: “Salutogênese, infância e desenvolvimento infantil”, que evidenciou pontos importantes a serem considerados na implementação de políticas públicas. Mas, afinal, o que significa salutogênese?
A palavra vem do latim ‘salutos’ (saúde) e do grego ‘gênesis’ (gênese). Seu conceito foi desenvolvido na década de 1970 por Aaron Antonovsky (1923-1994), um sociólogo e médico americano-israelense. Trata-se de uma abordagem que busca encontrar as forças que geram saúde, ao contrário do paradigma da patogênese, que se dispõe a investigar a origem das doenças e suas formas de tratamento.
A salutogênese traz a possibilidade de ampliar o olhar para além da doença e seus fatores, focalizando a saúde, sua origem e sua promoção. Em vez de perguntarmos quais são os fatores de risco ou estressores para determinada doença, perguntaríamos: por que eu contraí essa doença? Por que outras pessoas do meu convívio continuam sadias? O que as protegeu? Como superar determinado estressor?
Salutogênese e políticas públicas
Um governo que atua tendo como pano de fundo o paradigma da salutogênese, entendida como aptidão do indivíduo para viver com qualidade, para viver bem e para resistir às tensões e agentes estressores movido por um senso interno de coerência e valores subjetivos positivos, deve se atentar para dois fatores: os que não dependem da escolha do indivíduo (atributivos) e aqueles obtidos por esforço voluntário do indivíduo (aquisitivos).
Políticas públicas que apóiem os fatores aquisitivos são aquelas que ajudam os indivíduos a construírem um projeto de vida coerente, uma boa situação socioeconômica, que permitam boas interações afetivas interpessoais (amar e ser amado), que permitam um autodesenvolvimento amplo em termos estéticos, filosóficos e espirituais, assim como, um engajamento ideológico nobre, colaborando com o bem comum.
Já as políticas públicas que podem apoiar o desenvolvimento dos fatores atributivos dos sujeitos, são aquelas ligadas a tudo o que pode e deve ser feito durante o precioso e decisivo período da primeira infância: cuidar do bom nível nutricional, do atendimento às necessidades afetivas básicas da infância, do bom nível socioeconômico familiar, do bom nível de integração familiar, da boa qualidade de vida em relação ao meio ambiente e de bons cuidados educacionais.
Salutogênese e Primeira Infância
A noção de salutogênese tem na resiliência seu elemento principal. Ela parte do princípio de que vivemos em um constante equilíbrio dinâmico entre nossas funções orgânicas, emocionais e intelectuais. A boa notícia é que é possível fortalecer a resiliência desde o nascimento da criança, o que por sua vez fortalece o “senso de coerência”, outro elemento central da salutogênese, que tem a ver com a maneira como lidamos com as adversidades, estresses e tensões que a vida nos traz. Pessoas com baixo senso de coerência tendem a sucumbir às adversidades da vida (doença e morte) mais facilmente do que pessoas com forte senso de coerência.
Os Planos Municipais da Primeira Infância são um instrumento importante para indicar caminhos para o atendimento aos fatores atributivos, mencionados anteriormente e que, juntamente com os fatores hereditários, são decisivos para o desenvolvimento de um forte senso de coerência da pessoa.
Primeira Infância e Educação: Salutogênese na prática
Por bons cuidados educacionais entendemos o respeito ao desenvolvimento lento e harmonioso da criança, sobretudo nos seus primeiros três anos de vida, quando a conquista do andar ereto, da fala e da formulação de pensamentos ocorrem, predominantemente, via imitação (neurônios espelhos) das pessoas ao seu redor.
Pedagogias como a Waldorf e a Pikler, são exemplos práticos de pedagogias salutogênicas. Para elas os cuidados com a infância tornam-se os fundamentos da vida adulta. A falta desses cuidados fundamentais na tenra idade tenderia a gerar distúrbios na maturidade, ou seja, no futuro adulto.
Na visão salutogênica de Rudolf Steiner e Emmi Pikler a vivência de que “o mundo é bom” deveria ser o objetivo central da pedagogia na primeira infância. Isso implica muito mais em uma atuação primária nos processos básicos corporais e somáticos da criança através da ludicidade e do brincar livre do que na solicitação de atividades intelectuais precoces.
A qualidade de vida na primeira infância decorre de ações amorosas, coerentes, impregnadas de verdade e bondade. Uma boa alimentação e a chance de desenvolver-se fisicamente brincando em locais belos e seguros, potencialmente criativos e com boa socialização, são qualidades que vão sendo corporificadas pela criança, transformando-se em hábitos, o que possibilita a formação de um ser humano resiliente e com forte senso de coerência.
Políticas públicas intersetoriais que envolvam as diversas pastas de um governo, desde a segurança pública e o urbanismo, passando por planejamento e finanças até assistência social e educação, tendem a garantir melhores condições para o germinar, o florescer e o enraizar de políticas para a infância. Urge cultivá-las!
Anderson Paulino de Souza é professor e pedagogo, Mestre em Educação pela UNIRIO e especialista em Liderança e Gestão Pública pelo CLP e em Gestão da Educação Pública pela UNIFESP. Atua nas redes públicas municipais, do Rio de Janeiro e Araruama, e no Terceiro Setor, como membro e diretor do Instituto Miguilim para o Desenvolvimento Humano.