Breve histórico recente da regulação ferroviária no mundo e no Brasil
Desde a década de 1970, o mundo passa por uma revolução regulatória das ferrovias. Inicialmente ocorrida no Canadá e nos EUA, tais mudanças tiveram como propulsor uma longa decadência do setor, que perdia espaço para os modais rodoviário e aéreo. O diagnóstico, futuramente reconhecido como correto, era de que grande parte do problema era causado por uma má regulação, que ignorava a questão da competição intermodal.
Nos Estados Unidos, o marco regulatório anterior foi substituído pelo Staggers Rail Act, que propunha mais flexibilidade, menos intervencionismo e era lastreado em autorizações, em lugar das concessões. Tal mudanças levaram o país a um subsequente grande aumento do volume transportado nas ferrovias, junto também a uma redução de tarifas, fenômenos que raramente ocorrem concomitantemente.
Nos anos 90, o Brasil também participou dessa primeira onda de reformas, sem, no entanto, continuar avançando como os demais países. Tendo iniciado com uma combinação de desregulamentação com privatização, foi tentando implantar no setor a competição intramodal, tal como ocorria em outros setores de infraestrutura, como o de energia e o de telecomunicações.
No entanto, após esforços iniciais, o Brasil acabou deixando passar a oportunidade de continuar avançando em seu marco regulatório das ferrovias entre o final da década de 90 e o início dos anos 2010. Devido a tal atraso, hoje, a dimensão da rede ferroviária do país é a mesma da de 100 anos atrás, com 3,6 quilômetros por 1000 km2, frente a 32 nos Estados Unidos, 23 na Índia e 20,5 na China, como mostra a figura abaixo.
Atualmente, o Brasil se encontra na 83ª colocação de 101 países no ranking internacional de qualidade da infraestrutura ferroviária, desenvolvido pelo World Economic Forum. Cerca de apenas 20% das cargas nacionais em toneladas por quilômetro útil são transportadas por tal modal, o que se assemelha ao que se tinha na década de 90, evidenciando a estagnação do setor. Em termos de transporte de passageiros, de 75 países, o Brasil fica em 53º lugar em passageiros-km transportados em ferrovias como proporção da população, atrás de países como Tailândia, Paquistão, Indonésia e Tunísia. A colocação do país estaria ainda pior considerando sua grande extensão territorial.
Felizmente, a necessidade de maiores investimentos – principalmente privados – para a expansão no setor foi percebida pelos últimos governos desde o início dos anos 2010. No início, no entanto, o resultado foi considerado insatisfatório, segundo estudo do Banco Mundial (2017). Os resultados mal sucedidos se deveram, em grande parte, ao fato de o modelo escolhido pelo governo à época para o programa de concessão de ferrovias ter tido vários problemas. Entre as principais fragilidades, destacava-se o arranjo regulatório em si, inspirado em experiências europeias.
Um dos fatores principais dessa tentativa foi a busca por desverticalizar as ferrovias, separando a gestão dos trilhos da operação dos trens, como fez a Europa a partir dos anos 1990. Nesse modelo, considera-se que apenas um segmento da atividade ferroviária seria de fato um monopólio natural – no caso das ferrovias, a operação da malha, estações, sinalização e outras infraestruturas –, enquanto em outros poderia haver competição – nas ferrovias, em especial, a operação do transporte em si.
No entanto, para que tal modelo seja bem-sucedido, é necessário tanto maior segurança jurídica para impedir incertezas da atividade operatória das empresas que competirão pelo uso da malha ferroviária, como também maior simplicidade para a permissão, e subsequente barateamento dos investimentos para a sua expansão. Para adereçar a primeira questão, o Governo sancionou em 2017 a Lei nº 13.448, que estabeleceu novas diretrizes gerais para prorrogação e “relicitação” dos contratos de parceria nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário. Com isso, houve significativa melhora regulatória para a operacionalização das ferrovias.
No entanto, ainda são necessárias medidas adicionais para a maior atração de investimentos privados para a expansão da malha ferroviária. É nesse contexto que se tem o Projeto de Lei do Senado n° 261/0218, que regulamenta um dispositivo constitucional que prevê a exploração de ferrovias por autorização da União.
O PLS 261/2018
Atualmente, ferrovias são exploradas apenas nos regimes de concessão e permissão, em processos em geral significativamente burocráticos, e muitas vezes lentos, o único instrumento legalmente regulamentado para exploração de ferrovias é a ferrovia pública, precedida sempre por licitação.
Desse modo, grande parte da demanda por investimentos na expansão da rede ferroviária acaba por não ser totalmente atendida pelo setor privado. Com isso, a PLS 261/2018 propõe, dentre outras medidas secundárias, a desburocratização do acesso ao mercado ferroviário, possibilitando a entrada de novas empresas.
A Constituição Federal de 1988 instituiu a possibilidade de adoção do regime de autorização, que dá ao investidor privado maior flexibilidade e segurança para desenhar, construir e operar ferrovias de forma descentralizada, podendo escolher as origens e destinos e o próprio traçado da ferrovia. Em resumo, em tal regime, uma empresa poderá elaborar ela mesma um projeto de exploração de ferrovias, requisitando em seguida a autorização de sua proposta pelo órgão regulador ferroviário. Assim, o investidor é estimulado a investir, com custos regulatórios menores, e posse garantida dos ativos por um período entre 25 e 99 anos.
A proposta busca criar incentivos para o aumento da interconexão da malha ferroviária em todo o território nacional, induzindo o aumento da distância média de transporte (a partir do qual o uso de ferrovias torna-se mais barato em relação ao modal rodoviário) e o número de origens e destinos de cargas. Além disso também possibilitará a inserção do setor privado na coordenação de ações e na normatização técnico-operacional, com instituição de uma entidade da autorregulação, o que dará maior celeridade à modernização da indústria ferroviária. Para tratar de trechos ociosos, o projeto também prevê chamamentos para identificar investidores interessados em explorar tais ferrovias, com a possibilidade de retirada da concessão dos atuais operadores.
O projeto institui também a liberdade tarifária, além de também permitir a exploração de receitas não tarifárias, como por projetos imobiliários e logísticos vinculados ao empreendimento ferroviário. Esta segunda mudança está vinculada à seção de trens urbanos do PLS, que atualmente só se mantém viável com grande participação de subsídios públicos, cada vez mais inviáveis em meio a significativas restrições fiscais.
Impactos Econômicos Esperados
Segundo a OCDE (2011), a fraca infraestrutura continua sendo um grande gargalo para o desenvolvimento da agricultura brasileira, com baixos níveis de financiamento. Já o Banco Mundial (2017) publicou um estudo sobre esse insuficiente desenvolvimento do nosso setor ferroviário e a consequente hipertrofia do modal rodoviário no transporte de carga. Segundo a instituição, com políticas e regulamentações adequadas, o país poderia tornar seu setor de infraestrutura mais atraente para investidores privados. Uma implicação dessa análise é que o foco atual das autoridades brasileiras em relação a políticas públicas, que inclui a mobilização do financiamento comercial e o fortalecimento do papel do setor privado na gestão da infraestrutura.
O estudo conclui que o Brasil poderia economizar anualmente 0,7% do PIB com uma realocação de carga para as ferrovias. Esse valor equivale a mais do que o investimento anual do país no setor de transportes.
Adicionalmente, o projeto ampliaria os investimentos privados em ferrovias em mais de R$ 30 bilhões, segundo o diretor-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Fernando Paes. Já o Governo Federal projeta aumentos imediatos dos investimentos na ordem de R$ 8,5 bilhões.
Ainda que não sejam mencionados horizontes de tempo para tais impactos, será tomada como hipótese que o aumento total investimentos ocorreria em um período de cinco anos, enquanto os ganhos de eficiência projetados pelo Banco Mundial levariam cerca de dez anos para terem toda magnitude estimada – de modo que, em cinco anos, chegaria à metade do total.
Com isso, para ser projetado o impacto sobre o PIB, toma-se por hipótese que o ganho de eficiência se traduziria diretamente em aumento dos lucros (levando a um crescimento do agregado produzido/consumido pelo país). Já o aumento dos investimentos teria um impacto acumulado sobre o PIB, em cinco anos, de 0,17%, segundo trabalho dos economistas Ferreira e Araújo (2007), para o qual cada aumento de um ponto percentual do PIB em investimentos públicos em infraestrutura gera um aumento de 5% da produção nacional em 20 anos (tal proporção é aplicada linearmente por hipótese). Desse modo, até 2026, a PLS 261/2018 levaria a um crescimento acumulado do PIB de 0,52%.
A projeção, vale mencionar, não leva em consideração o impacto das externalidades positivas do uso do transporte ferroviário, principalmente nas áreas urbanas, que levaria a uma melhora na mobilidade, diminuindo os tempos de deslocamento casa-trabalho, além de menor poluição do ar. Também não são consideradas a potencial expansão imobiliária prevista no projeto, que levaria a um aumento da oferta de residências e estabelecimentos comerciais no entorno das estações ferroviárias. É seguro presumir, portanto, que tal impacto se encontra subestimado em relação ao seu potencial total.
Conclusão
Após quase duas décadas sem avanços regulatórios no setor ferrovias, levando o Brasil a uma estagnação de sua malha ferroviária e colocando o país em posições desconfortáveis relacionadas a tal modal, tentativas foram encaminhadas para a expansão do setor na última década, mas com pouco sucesso. Atribui-se a tal dificuldade de alavancar investimentos às dificuldades na regulação, que obriga o setor privado a esperar por projetos que parte apenas do setor público, sendo em seguida licitados e concedidos por tempo determinado.
Desse modo, o PLS 261/2018, denominado Novo Marco das Ferrovias, institui o uso de autorizações de projetos que parte do próprio setor privado para complementarem e/ou substituírem as concessões dos públicos. Assim, com maior liberdade regulatória e menor burocratização, novos investimentos serão atraídos, não só para o transporte de cargas, mas também de passageiros, impulsionado pela instituição de liberdade de exploração de receitas não tarifárias, como exploração imobiliária do entorno das estações.
Tais mudanças levariam a uma expansão do PIB por pelo menos dois canais: o impacto do aumento dos valores investidos pelo setor privado, além de uma maior eficiência no escoamento da produção agrícola e mineral. Considerando apenas esses mecanismos, projeta-se que, em cinco anos, o PIB teria um crescimento acumulado de 0,52%.
Referências Bibliográficas
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Ferreira, P. C., & Araújo, C. H. V. (2007). Growth and fiscal effects of infrastructure investment in Brazil. RS, editors, Fiscal Policy, Stabilization, and Growth. The World Bank, Washington.
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Pinheiro, Armando Castelar, and Leonardo Coelho Ribeiro (2017). Regulação das ferrovias. FGV Editora.
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