Introdução
No ano de 2015, a Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), um conjunto de 17 metas globais, com o propósito de promover o desenvolvimento sustentável até 2030. O sexto objetivo, denominado “Água potável e saneamento”, foca na garantia da disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos. Este ODS reconhece a importância fundamental da água potável, do saneamento básico e da higiene para o bem-estar humano, a saúde pública e o desenvolvimento sustentável.
No Brasil, os dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS) mostram que cerca de 15% da população não tem acesso a água tratada, e cerca de 40% não tem acesso à coleta de esgoto. Nesse sentido, destacam-se também as elevadas desigualdades regionais existentes no tema. Assim, segundo dados do Ranking de Competitividade dos Municípios, das cidades da região Norte com população acima de 80 mil habitantes, 65,22% apresentam menos de 25% de cobertura de coleta de esgoto e 65,79% apresentam menos de 75% de sua população coberta com abastecimento de água. Para a região Nordeste, do total das cidades que possuem mais de 80 mil habitantes, 39,76% apresentam menos de 25% de cobertura de coleta de esgoto e 23,33% não atingem 75% da população coberta com abastecimento de água. No Sudeste, por outro lado, somente 3,76% das cidades com população acima de 80 mil apresentam cobertura de coleta de esgoto abaixo de 25% e somente 6,88% apresentam menos de 75% de suas populações cobertas com abastecimento de água.
Importante ressaltar que apesar de a prestação de serviços de água e esgoto ser responsabilidade dos municípios, segundo julgamento do Supremo Tribunal Federal em 2013, historicamente, companhias estaduais de água e esgoto têm sido aquelas que têm operacionalizado o setor para a maior parte da população.
Com o objetivo de coordenar esforços de expansão desses serviços, o Governo Federal lançou o Plano Nacional de Saneamento Básico em 2014, estabelecendo uma necessidade investimentos de cerca de R$ 540 bilhões, a preços de 2022, para o cumprimento das metas de universalização do atendimento de água e esgoto até 2033. No entanto, entre 2011 e 2019, houve relativa estagnação do investimento em saneamento básico no Brasil, em torno de R$ 17 bilhões por ano, como mostra o gráfico abaixo. Tal patamar, se fosse mantido, seria capaz de alcançar a meta de investimento apenas em 2046. Segundo um estudo do Grupo de Estudos do Meio Ambiente, do Instituto de Economia da UFRJ, seria necessário um crescimento médio anual de 11% até 2030 para que se pudesse chegar a um total investido suficiente para o atendimento das metas.
O Novo Marco do Saneamento Básico
Tendo em vista, portanto, a necessidade de alavancar os investimentos no setor, foi promulgada a Lei nº 14.026/2020, que atualizou o marco legal do saneamento básico. O novo marco apresenta como um dos pontos principais: a proibição da prestação por contrato de programa dos serviços públicos de saneamento básico. Até então, muitas vezes Companhias Estaduais permaneciam como prestadoras deste setor com renovação automática dos contratos. A partir do Novo Marco, licitações haviam sido outorgadas, em que estas empresas públicas acabam por ter que competir com outras do setor privado pela concessão do serviço, tendo, portanto, que apresentar metas e planejamento tarifário.
Desse modo, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) passou a desempenhar um papel mais amplo na regulação do setor. A ANA tornou-se responsável por estabelecer normas de referência para as demais. Estas abordam aspectos como padrões de qualidade e eficiência, regulação tarifária, metas de universalização, critérios para contabilidade regulatória, controle de perda de água, metodologias de cálculo de indenizações e sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de saneamento básico. Na temática da perda de água, por exemplo, nota-se que, segundo o Ranking de Competitividade dos Municípios, ela se encontra em aproximadamente 40% considerando-se a média simples de perda de água na distribuição dos municípios brasileiros com população acima de 80 mil habitantes. O desafio é mais expressivo nas regiões Norte e Nordeste. Na primeira, quase ¼ dos municípios presentes na ferramenta apresentam mais de 50% de perda de água na distribuição. Já no Nordeste, o número de municípios com perda de água acima de 50% aproxima-se de 49%.
As regulamentações que permitem a concorrência entre os setores público e privado no fornecimento de água e saneamento podem oferecer várias vantagens em comparação com a provisão pública direta. Essas vantagens podem resultar em melhor qualidade de serviço, maior eficiência e uso mais eficaz dos recursos.
Maior eficiência: A concorrência pode levar tanto os prestadores públicos quanto os privados a melhorarem sua eficiência operacional. Isso pode resultar em reduções de custos e melhor uso dos recursos disponíveis, diminuindo, em última instância, o ônus financeiro para os contribuintes e consumidores.
Melhoria na qualidade do serviço: Quando os prestadores de serviço competem, eles têm um maior incentivo para melhorar a qualidade de seus serviços, a fim de atrair e manter clientes. Isso pode resultar em melhor manutenção da infraestrutura, fornecimento de água e serviços de saneamento mais confiáveis e maior capacidade de resposta às necessidades do cliente.
Estímulo à inovação: Mercados competitivos podem estimular a inovação, pois as empresas buscam novas maneiras de se diferenciar e obter vantagem competitiva. Isso pode levar ao desenvolvimento de novas tecnologias, processos e práticas de gestão que aprimoram a prestação de serviços e contribuem para a sustentabilidade de longo prazo.
Atração de investimento privado: Abrir o setor de água e saneamento à concorrência pode atrair investimentos privados, o que pode ajudar a preencher a lacuna entre os fundos necessários para o desenvolvimento da infraestrutura e aqueles disponíveis por meio de fontes públicas. O investimento privado também pode trazer conhecimentos valiosos e know-how de gestão para o setor.
De fato, houve, desde a introdução do Novo Marco do Saneamento, forte expansão dos investimentos em saneamento básico. Ao todo, 22 leilões foram realizados desde sua promulgação, com investimentos planejados somando R$ 55 bilhões. Segundo um estudo produzido pela Inter.B Consultoria, os investimentos em saneamento básico chegariam a R$ 24,6 bilhões em 2023 – um aumento de quase 30% em relação ao nível de 2019.
O decreto do Governo
O Novo Marco do Saneamento previa que empresas prestadoras de serviço de saneamento teriam até 31 de março de 2022 para apresentar comprovação econômico e financeiro junto à entidade reguladora responsável pelo julgamento em cada Estado, que validariam ou não tal documento, podendo requerer nova licitação. Até então, muitas companhias não tinham ainda atendido tal prazo, o que levaria ao requerimento das licitações. Adicionalmente, em um levantamento, foi mostrado que cerca de 80% das prestações não atingiam os indicadores mínimos, o que forçaria a entrada da competição.
O Governo, no entanto, publicou um decreto estendendo o prazo para a apresentação da comprovação até 31 de dezembro de 2023. Além disso, o órgão regulador precisará atestar a capacidade ou não da prestação do serviço apenas em 31 de março de 2024. Outra mudança é que, caso os indicadores mínimos não sejam atendidos no documento, a empresa prestadora poderá apresentar um novo plano de metas, que deverá atender tais mínimos em até 5 anos.
O novo decreto, portanto, facilita a permanência de empresas estatais que não conseguiram atingir a meta de universalização dos serviços. As companhias atuais garantem suas prestações, mesmo deficientes, até o ano de 2029, mesmo sem garantia que irão cumprir suas metas até esse ano. Com isso, o Governo coloca em risco os avanços gerados até então, o que levará o Brasil a potencialmente não cumprir o sexto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável em 2030, e, assim, como consequência, a não realização da meta de universalização do Plansab, em 2033.
O atraso dos planos de universalização dos serviços de água e esgoto têm fortes consequências negativas para a população. Segundo o Instituto Trata Brasil, investimentos de R$ 24 bilhões por ano (considerados necessários para a universalização), junto a um aumento dos gastos das famílias com tarifas de água e esgoto de R$ 10 bilhões (R$ 3,90 por pessoa/mês), levaria a um ganho social de R$ 80 bilhões anuais, devido principalmente aos ganhos de emprego e produtividade gerados. Ou seja, tal patamar de investimentos levaria a um ganho social líquido de cerca de R$ 45 bilhões por ano. Considerando o retrocesso no decreto levando a uma redução do patamar atual de investimentos, podendo voltar ao nível de 2019 (cerca de R$ 19 bilhões), o Brasil pode perder, portanto, cerca de R$ 10 bilhões de economia anual.
Tem ainda sido questionado o próprio princípio da legalidade, por ir contra o Novo Marco do Saneamento, que foi promulgado pelo Congresso Nacional. Segundo o Artigo 59 da Constituição Federal de 1988, o processo legislativo (ou seja, que exige a participação do Congresso Nacional) compreende a elaboração de quaisquer leis complementares, ordinárias ou delegadas. Desse modo, quaisquer mudanças aplicadas ao texto das leis, tal como o Novo Marco do Saneamento, deveriam ser votadas pelos Deputados e Senadores, não podendo ser alteradas por decreto. Tem-se ainda uma grande insegurança jurídica introduzida por essa tentativa, alterando o curso de uma política pacificada.
Painel Indicadores Saneamento CLP –
Por Daniel Duque, gerente de Inteligência Técnica do CLP; e Pedro Trippi, coordenador de Inteligência Técnica do CLP