O Dilúvio Digital e a Seca das decisões baseadas em evidências

Estamos em uma era de abundância de dados, o que não necessariamente significa que os governantes estão tomando decisões mais inteligentes. É preciso refletir acerca do grande potencial de criação de valor contido nos dados. Também é bem verdade que os governos ainda não possuem resposta certeira a respeito do que fazer com a quantidade de dados gerados pela transformação digital.

A transformação digital implica uma mudança de paradigma. Quando os serviços digitais são desenvolvidos a partir da perspectiva do cidadão, “colocar na internet” não é o suficiente. A simples disponibilização de serviços digitais na internet, embora seja o primeiro passo importante, não garante uma experiência satisfatória e eficiente para o cidadão. Uma verdadeira transformação digital ocorre quando há construção de políticas públicas baseadas em evidências.

Um “lago de dados” ou “Data Lake”, no jargão dos analistas de TI, tem se destacado como a melhor analogia para referir-se a quantidades astronômicas de dados. No entanto, ter um lago não significa saber nadar. Através da análise de grandes volumes de informações, é possível identificar problemas sociais, otimizar a prestação de serviços públicos e desenvolver políticas públicas mais eficazes.

Em tempos de eleições municipais, abre-se uma janela de oportunidade para incluir a elaboração e avaliação de políticas públicas baseadas em evidências na agenda dos futuros prefeitos. O mantra a ser repetido é o de que Cidades Inteligentes devem empenhar-se em ser preditivas e preventivas frente aos problemas. Cidades Inteligentes são sustentáveis, inclusivas e usam a tecnologia para aumentar o bem-estar dos cidadãos. Os dados deveriam ser vistos como ativo estratégico, assim como foi o petróleo no século XX. Belo Horizonte, uma das cidades mais inteligentes do Brasil, instituiu por meio do Decreto n°18.728, de 11 de junho de 2024, a Política de Inteligência de Dados. Neste decreto, Belo Horizonte regulamenta a coleta, armazenamento, análise e uso de dados, além do uso de inteligência artificial para a tomada de decisões no âmbito municipal.

A inteligência artificial pode ser uma caixa de pandora ou uma poderosa ferramenta, a depender da qualidade dos dados utilizados e como os algoritmos se comportam e são avaliados ou aprimorados. Este último item da moda, que tem causado um frenesi no meio acadêmico, tecnológico e nas redes, em função da popularização da IA generativa, não é uma solução mágica. A inteligência artificial é alimentada por uma quantidade massiva de dados. O cerne da questão é o tratamento que estamos dando a estes dados. Afinal, a IA, se não for bem governada, pode perpetuar desigualdades e agravar problemas sociais e ambientais.

O relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) ‘Governando a IA para a Humanidade’ nos presenteia com uma métrica clara para avaliar o sucesso da inteligência artificial: análise do quanto a inteligência artificial contribui para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Embora não seja a solução para todos os problemas, a inteligência artificial pode ajudar sim a resolver parte dos problemas que são postos diariamente aos gestores municipais.

É desafiador discutir transformação digital, cultura de dados e inteligência artificial em um contexto onde parcela significativa da população brasileira ainda carece de acesso a serviços básicos como saneamento e educação de qualidade. Enquanto uma parcela da sociedade discute algoritmos e big data, outra luta por condições mínimas de vida. Embora paradoxal, é exatamente por isso que o chamado para a construção de uma cultura de decisões baseadas em evidências é para todos. Independentemente do tamanho do orçamento e do desenvolvimento tecnológico, todos os gestores públicos, do Oiapoque ao Chuí, podem se engajar na construção de um país melhor e utilizar de várias fontes de dados já disponíveis.

O caminho das pedras está dado. No Brasil, os gestores públicos subutilizam as informações geradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto Nacional de Pesquisa Aplicada (IPEA). Há outras fontes que poderiam gerar insights valiosos para a tomada de decisão na gestão pública. O Ranking de Competitividade dos Estados e Municípios, organizado pelo Centro de Liderança Pública, que atualmente está em sua 5a edição, por exemplo, é uma ferramenta que pode apoiar os líderes públicos na tomada de decisão. Ele oferece um panorama detalhado sobre o desempenho de cada município, considerando diversos indicadores como educação, saúde, infraestrutura, inovação e desenvolvimento social.

A abundância de dados é um fato. A questão que se põe na mesa é como transformar essa abundância em conhecimento e, a partir deste conhecimento, gerar valor e bem-estar para a sociedade. Ao dominar essa habilidade, os gestores podem tomar decisões mais assertivas, otimizar recursos, identificar novas oportunidades e, consequentemente, melhorar a qualidade dos serviços públicos e a vida dos cidadãos.

Diante do exposto, fica evidente a necessidade de que os gestores públicos desenvolvam a capacidade de analisar dados. A construção desta capacidade demanda investimentos em tecnologia, na capacitação de servidores públicos e na promoção de uma nova cultura de gestão pública baseada em evidências, dados e centrada em pessoas. A clareza de propósito também é essencial nesta jornada para que a gestão pública avance sem deixar de lado as milhares de pessoas em vulnerabilidade social que estão excluídas digitalmente nas vilas e favelas.

1 United Nations. Governing AI for Humanity. 2023. Disponível em:
2 CLP – Centro de Liderança Pública. Ranking de Competitividade dos Estados e Municípios.
Disponível em: https://conteudo.clp.org.br/ranking-de-competitividade-2023-relatorios. Acesso em: 10
de abril de 2024.

Por Jean Mattos Duarte, líder MLG e diretor presidente da Empresa de Informação e Informática do
Município de Belo Horizonte (PRODABEL) da Prefeitura de Belo Horizonte e Tamiris Cristhina
Resende, doutora em Administração Pública e gerente de relacionamento da PRODABEL

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