Neste texto, abordo a complexidade de fazer politicas públicas sociais baseadas em evidências e de forma intersetorial. Assim, trago como exemplo prático o Observatório Social de Aracaju. Confira:
A complexidade das políticas públicas sociais
Toda política pública busca resolver um problema público. Quando tratamos de política pública social, não estamos falando de um problema único, nem de um problema simples.
Imagine a situação da D. Maria: ela hoje mora com 3 filhos, e já esteve casada com um homem que a agredia continuadamente. Recebe Bolsa Família e, para não perder o benefício, precisa comprovar periodicamente que seus filhos estão matriculados na escola e o seu pequeno tem que estar com a vacinação em dia. Ela precisa trabalhar, mas não tem onde deixar seu bebê. O filho mais velho está envolvido com tráfico de drogas. O bairro onde mora não possui áreas de esportes ou lazer. Não acontecem ali atividades de arte e cultura e as ruas são muito sujas e escuras, comprometendo a segurança de sua família.
Não é possível que uma única política pública resolva todos os problemas da Dona Maria. Mas é preciso que todas as áreas do Poder Público atuem de forma planejada e integrada para que a vida da Dona Maria seja um pouco melhor.
A Dona Maria existe e mora em Aracaju, no Nordeste, capital de Sergipe, menor estado do Brasil, com 648.939 habitantes (2018). Seu Índice de Gini, de 0,62 em 2010, indicava grande desigualdade de renda no Município.
Em setembro de 2019, 75.051 famílias estavam inseridas no Cadastro Único (base de dados com informações socioeconômicas das famílias de baixa renda), ou seja, quase metade da população (5 pessoas por família). Destas, 30.594 famílias são beneficiárias do Bolsa Família.
Observatório Social: Integrando as políticas públicas sociais de Aracaju
No início da gestão atual, o problema principal diante do cenário financeiramente difícil era que as políticas sociais de Aracaju tinham pouca ou nenhuma eficiência e eficácia. Grande parcela da população estava desassistida, em especial nos bairros mais pobres.
O desafio que se colocou dentre tantos outros, era repensar e integrar as políticas públicas sociais de Aracaju. De forma a melhorar seus indicadores, potencializar resultados e promover maior impacto na vida das pessoas, especialmente as que se encontravam na pobreza e extrema pobreza.
Para isso, era preciso:
- 1. Entender a realidade em que se pretendia atuar;
- 2. Coletar e sistematizar dados das Secretarias, que eram inconsistentes e desorganizados, especialmente da Assistência Social, Educação, Saúde e Segurança; e
- 3. Mapear, por bairros, as necessidades para estabelecer prioridades e alocar recursos (financeiros e de pessoal) de forma otimizada.
Neste intuito, foi criado o Observatório Social, inicialmente funcionando no Planejamento da Secretaria de Assistência Social de Aracaju, que assumiu o compromisso de articular, organizar informações, integrar olhares e definir metas coletivas na área social de forma a subsidiar ações, projetos, programas intersetoriais de todas as pastas envolvidas.
Foi entendido que algumas Secretarias precisavam unificar suas bases territoriais de planejamento para entender seus indicadores a partir de uma única base oficial com o agrupamento de bairros em 8 regiões (a partir de dados dos Censos dos Bairros IBGE e do CadÚnico, além de outros critérios específicos) que poderia ser comparada espacialmente e temporalmente, norteando o planejamento socioespacial das políticas com mais precisão.
O diagnóstico baseado em evidências
Foram realizadas parcerias com os departamentos de Estatística e Geografia da UFS – Universidade Federal de Sergipe, que auxiliaram, a partir da monitoria de professores e disponibilização de estagiários, na estruturação, análise e mapeamento dos dados coletados. Um dos primeiros produtos desta aproximação foi a “limpeza” e organização do banco de dados do CadÚnico, que se tornou um rico repositório de informações georreferenciadas socioeconômicas, de onde se produz muito conhecimento sobre a realidade municipal.
Deste trabalho, já no início, resultaram:
- Mapa da Desigualdade Social de Aracaju;
- Mapa da Violência de Aracaju;
- Mapa do Bolsa Família;
- Mapa da Primeira Infância;
- Mapografia Social de Aracaju;
- Matriz de Indicadores Sociais;
- Mapa dos Equipamentos Públicos de Assistência Social, Saúde e Educação; e
- Mapa das Regiões de Planejamento da Assistência Social, Educação e Saúde.
Em um segundo momento, a partir destes diagnósticos realizados, identificou-se que as maiores vulnerabilidades sociais de Aracaju se concentravam principalmente no Santa Maria, bairro de grande extensão territorial e populoso (33.475 moradores, com 24.413 pessoas no CadÚnico e 15.082 pessoas beneficiárias do Bolsa Família), que se tornaria a Região 7 nos mapas em comum das Secretarias. Decidiu-se por concentrar esforços nesta Região na promoção da intersetorialidade de projetos, programas e atividades na área social.
Planejamento intersetorial
Elaborou-se, então, o Caderno Perfil do CadÚnico do Santa Maria. Ele contém todas as informações relacionadas a renda, faixa etária, escolaridade, gênero, etnias, violências, pessoas com deficiência, etc, a ser disponibilizadas tanto aos gestores como aos trabalhadores na ponta, de forma a nortear melhor a atuação do poder público no território e potencializar os serviços na forma de uma rede mais integrada e com fluidez.
As Secretarias, a partir das informações disponíveis, passaram a planejar e implementar projetos de forma conjunta:
- • Projeto Aracaju Segura;
- • Programa Criança Feliz;
- • Projeto Ciranda das Marias;
- • Projeto Mamãe Coruja;
- • Oficinas do Mundo do Trabalho;
- • Projeto Cultivando a Cidadania;
- • Projeto Lápis de Cor (contra o racismo na infância);
- • Projeto Benguela (histórias de meninas negras);
- • Projeto Eles com Elas;
- • Patrulha Maria da Penha;
- • Projeto Ocupe a Praça;
- • Busca Ativa Escolar (que possibilitou zerar a fila de creche no bairro);
- • Projeto Anjos Azuis, e outros.
Cada um destes projetos conta com, no mínimo, duas secretarias envolvidas.
Resultados do Observatório Social de Aracaju
Alguns indicadores de processo já apresentam os efeitos da intersetorialidade, pois demonstram maior cobertura dos serviços sociais:
- Aumento das matrículas na educação infantil;
- Aumento no atendimento/acompanhamento de famílias nos CRAS (Centro de Referência Social);
- Aumento da quantidade de jovens beneficiados por projetos de arte e cultura;
- Aumento da quantidade de mulheres sendo orientadas e capacitadas para o mundo do trabalho, etc.
Pode-se apreender desta vivência que o aprendizado é contínuo. Desde o início, o processo de construção da equipe para atuar no Observatório, metodologia, parcerias, aconteceu ainda na base da experimentação. O Observatório Social encontra-se, hoje, junto à Coordenação do Planejamento Estratégico. Porém, com necessidade de legitimação (não existe oficialmente na estrutura administrativa) e incremento (de pessoas e recursos materiais) para dar respostas mais ágeis e precisas ao empobrecimento da população que tem urgência em políticas mais efetivas e na atuação do Estado com serviços públicos mais eficientes.
Todavia, parece já consenso entre os gestores de Aracaju que as políticas sociais não podem ser concebidas de forma isolada, sem dados e de forma difusa. O maior legado desta iniciativa tem sido a geração de uma cultura de se construir políticas públicas com base em evidências, intersetorialmente, voltadas para o enfrentamento de problemas conhecidos e bem diagnosticados. Espera-se que esta prática se institucionalize e perpasse mandatos, agendas e gestões. A Dona Maria agradece.
Shirley Dantas, é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal do Ceará. Com mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, é também doutoranda em geografia pela UNICAMP. É líder pós-graduada pelo Master em Liderança e Gestão Pública – MLG. Ela já foi diretora de planejamento da Secretaria de Planejamento do Município de Itu – SP e também secretária municipal de Planejamento de Itu. Atualmente ela é assessora de planejamento da Vice-Prefeita de Aracaju, Eliane Aquino.