A trajetória da igualdade de gênero é um caminho repleto de curvas e obstáculos. Para entender em que estágio estamos nesta estrada, temos um convite à reflexão. Olhe a sua volta: com quantas mulheres você trabalha? Quantas exercem cargos de liderança? Com que frequência você presencia ou escuta relatos de mulheres tendo a fala interrompida em reuniões? Já ouviu comentário a respeito da aparência ou do modo de se vestir em detrimento da capacidade ou o clássico “a fulana é filha ou esposa de quem”? Você lembra de exemplos recentes de políticas públicas voltadas para as mulheres?
Lógico que vivemos hoje em um Brasil melhor se compararmos com a realidade enfrentada por nossas avós e bisavós, mas a realidade é dura para muitas mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Por isso, o feminismo precisa ser uma luta de todos.
“Quando todos são iguais, nós somos mais livres”
O próprio Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos, declara-se feminista e sustenta que a responsabilidade na luta contra o machismo é também dos homens. “O feminismo do século 21 é a ideia de que quando todos são iguais, nós somos mais livres”, afirmou em um histórico artigo publicado na Glamour americana quatro anos atrás.
Precisamos romper algumas barreiras, a principal delas é compreender o real significado da palavra feminismo, que NÃO é o contrário de machismo, mas a luta por direitos e oportunidades iguais. A segunda é parar de uma vez por todas de taxá-lo como uma agenda de uma determinada ideologia política. Não à toa estamos aqui jogando luz ao tema. Então, se você acredita (e defende) que todos devemos ter igualdade de oportunidades, como determina a nossa Constituição, você também é feminista.
A importância da Declaração de Pequim
Setembro é um mês emblemático na luta pela igualdade de gênero. Há 25 anos, um pacto foi selado em Pequim por mais de 30 mil ativistas e representantes de 189 nações: meninas e mulheres teriam igualdade de direitos e oportunidades. Em TODOS os lugares.
Até hoje, a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim são consideradas as agendas mais visionárias e abrangentes sobre igualdade de gênero e empoderamento de mulheres, da manutenção de direitos e conquistas à promoção de caminhos de mudança.
O documento estabeleceu 12 áreas prioritárias, entre elas, pobreza, educação e capacitação, saúde, violência, economia, mídia e também poder e liderança. Ao fazer uma avaliação sobre os 25 anos da agenda da Declaração de Pequim, a diretora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, reconhece que ocorreram avanços, mas considera que não fomos longe nem rápido suficiente: “Já estamos em 2020, mas nenhum país alcançou a igualdade de gênero. As mulheres continuam sendo espremidas em apenas um quarto do espaço nas mesas de poder.”
25 anos após Declaração de Pequim, Brasil avança devagar em “poder e liderança”
O retrato brasileiro revela que não chegamos nem aos 20%, que dirá a um quarto, embora representemos 52,49% do eleitorado, segundo o mais recente levantamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ao comparar os dados da época com a realidade atual, percebe-se que, nas eleições de 1994, as mulheres conquistaram cerca de 7% das cadeiras na Câmara dos Deputados e no Senado. Hoje, têm 15% dos assentos. Estamos atrás até de países como Afeganistão e Arábia Saudita.
Levando-se em conta a média global, elas ocupam 23,5% das cadeiras nos Parlamentos, segundo dados da ONU. Nos municípios, o percentual é ainda mais baixo. Somente 5,5% eram comandados por mulheres em 1997. Hoje, são apenas 11,9%. Nas Câmaras Municipais, o número de vereadoras passou de 11,1% para 13,5%. Tal sub-representação
feminina também é visível em cargos de liderança no serviço público.
E quais são as expectativas para as eleições de 2020? Os partidos passam a ser obrigados a apresentar autorização por escrito de todas as candidatas. É uma forma de garantir que elas tenham de fato interesse em concorrer e não sejam indicadas pela sigla apenas para cumprir a cota feminina – de 30%. Além disso, os recursos públicos destinados a candidaturas femininas também terão de ser proporcionais ao número de mulheres na disputa – com o mínimo de 30% do montante. Se o partido contar com mais candidatas, elas deverão ter mais dinheiro à disposição. Se isso vai garantir a eleição de mais mulheres, precisaremos aguardar os resultados. Não podemos esquecer o contexto de pandemia que tem afetado duramente as mulheres.
Bertha Lutz, uma das maiores líderes na luta pelos direitos políticos das mulheres brasileiras. Celina Viana, a primeira eleitora do país. Alzira Soriano, primeira prefeita da América Latina. Antonieta de Barros, primeira deputada negra do Brasil. Carlota Pereira de Queiroz, primeira deputada federal. São pioneiras, brasileiras à frente do seu tempo, que lutaram para que hoje tenhamos mais direitos e oportunidades. Trajetórias que devemos honrar e jamais permitir retrocessos.
Mulheres-mães na política
Valemos-nos de um exemplo da ficção para finalizar o nosso convite à reflexão. A série Borgen, disponível na Netflix, retrata a ascensão da personagem Birgitte Nyborg como primeira-ministra da Dinamarca. Em um dos tantos obstáculos que enfrenta e em meio a um drama familiar, ela se vê diante de um debate nacional por ser mulher e mãe. Para estancar a crise, Birgitte faz um enfático discurso diante do parlamento. Em resumo, ela diz que “aqueles que desejam debater se as mulheres devem entrar na política nos mesmos termos que os homens, só posso dizer que
vocês estão 100 anos atrasados”.
As conquistas do passado nos fortalecem, mas precisamos avançar, ocupar mais espaços e rapidamente e, de uma vez por todas, pôr fim à sub-representação das mulheres nos espaços de poder.
Patrícia Florêncio é gestora pública e mestre em e-gov e inovação. Aline Mendes é jornalista, foi repórter e editora de jornais no Rio Grande do Sul e hoje é assessora parlamentar de Comunicação no Legislativo. Ambas são Master em Liderança e Gestão Pública, pelo CLP – Liderança Pública, das turmas 6 e 7, respectivamente, que contam com percentual maior de mulheres em suas composições. Elas também são cofundadoras da Rede Mulheres Públicas, com olhar atento ao serviço público e seus desafios de gênero.